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Maria Júlia

 


Eu estou muito mais feliz agora. É engraçado como os momentos felizes que vivemos passam em distrações, mas os tristes deixam marcas de alívio que temos desejo de compartilhar com todo o mundo. Maria Júlia. Este é o nome da criança que mudou minha vida para sempre. Há dez anos atrás eu morava em um pequeno apartamento numa região metropolitana afastada do centro da cidade. As escadas do prédio eram íngremes e escuras e em cada andar, até chegar ao do meu apartamento, podia se ouvir três coisas com certeza; discussões de casais que se encrespavam por qualquer coisa; crianças demais para um apartamento tão pequeno quanto aqueles; ou um silêncio mortal que se explicava dias depois. Eu me lembro do dia em que tomei a decisão de ir morar naquele lugar. Minha mãe, sempre com a razão, me implorou para que não fosse, pois ela via naquela situação, a que ela passou com meu pai. No momento, com a cabeça quente, e envolta numa paixão cega, ainda me virei contra ela. Apontando defeitos meus como se todos fossem responsabilidade dela. Nosso relacionamento hoje em dia é melhor, o meu e de minha mãe. Existe um respeito de quem viveu a mesma coisa, de quem passou pelo mesmo vale e sobreviveu a morte para contar a história. A porta do apartamento dava para uma sala que parecia mais um corredor. Estreita demais para conter qualquer coisa, mas abarrotada, pois o parceiro que estava na época gostava de decoração maximalista. Descobri com o tempo de convivência que na verdade ele era apenas um acumulador. Colocando prateleiras onde não cabiam nem quadros e guardando cada garrafa de encontros em que nos divertíamos. “São totens de um momento alegre” - dizia ele com um sorriso desconfiado. A verdade é que ele sabia, no fundo, que era um acumulador. Sabia também como era abusivo e inseguro. Mas assim como ele, eu me colocava no papel de vítima de uma maneira muito mais complexa do que se pode imaginar. Um exemplo foi um dia em que eu tentava reproduzir uma receita que vi na internet. A casa estava limpa, na medida do possível, as contas, pagas e eu acabara de lavar toda a louça do almoço que preparei para nós dois. Um potinho de fermento. As pessoas perguntam por que diabos tenho tatuado em meu braço um potinho de fermento. Elas riem de como coloquei até o nome da marca no desenho; “Você podia ter colocado um nome fictício né? Agora você é divulgação humana e ambulante de fermento de bolo. Isso é hilário” Um potinho de fermento era o único ingrediente que faltava para ela terminar a receita naquele dia. A tatuagem foi feita exatamente no lugar onde o homem me segurou com uma força sobre-humana ao me arremessar no canto da cozinha em um surto de raiva. Tentava não guardar tanto a memória daquele momento. A dor no braço. O medo pela própria vida. A vergonha de entrar no jogo do prédio onde todos os apartamentos tinham algo de trágico acontecendo. O nojo por enxergar atrás do botijão de gás mais de trinta bitucas de cigarro apodrecendo. No momento em que estava no chão tive um lapso inconsciente de consciência. Como se por apenas um segundo pudesse ver de fato o lugar onde estava. Um sentimento de pavor tomou conta do meu corpo em um milissegundo, até que o homem à minha frente passou a se debulhar em lágrimas. Lembro de sentir como se estivesse embriagada e de repente um momento pedisse para que eu estivesse sã. Me levantei com urgência e embalei o homem à minha frente num abraço caloroso ao mesmo tempo em que lhe professava palavras de carinho e perdão. A tatuagem era ao mesmo tempo sobre a dor em meu braço que nunca passou e sobre o amor. O amor visto do escuro. Aquele sentimento que está em todas as tragédias mais horrendas do mundo, a conexão entre pessoas que viram os sinais há tempo, mas que ficaram por acreditar que amavam. Depois daquele dia as agressões físicas tornaram-se quase que rotina. Me dói tanto falar sobre isso, pois eu sinto como se eu estivesse exatamente na minha frente, vivendo aquele momento de assalto e dor e eu não estivesse fazendo nada. As vezes sinto culpa pelas marcas que tenho e as vezes sinto vergonha. Mas hoje em dia já aprendi a ter mais orgulho da pessoa que me tornei. Nós dois trabalhávamos muito. Ele, gerente em uma grande companhia e eu cabeça de marketing em uma empresa de tecnologia. Para mim era muito importante conversar sobre coisas abstratas, sobre teorias de cor e sobre como um quadrado pode ser sim, muito mais relevante que um círculo se bem inserido em uma peça. Mas eu nunca obtive retorno em minhas divagações. De fato, eu entrava em discussões sobre supervisores e funcionários que não entendiam o básico de convivência humana, segundo ele. Quando você chegou Maria Júlia eu juro que pude te sentir pela manhã. A janela da cozinha estava aberta e eu sentada no sofá calçando meus sapatos, na correria de todas as manhãs, senti uma brisa incomum atravessar a casa. Era uma quarta-feira de outono. O vento foi um pouco gelado, mas eu sempre adorei a brisa da manhã. Era algo que sentia todos os dias em que morava na casa de minha mãe. Mas que naquele apartamento, mesmo depois de dois anos vivendo ali, nunca tinha acontecido. Era como se você estivesse me dizendo oi e me chamando para outro lugar que não fosse aquele. No ônibus, quando lia conversas de pessoas em seus celulares e elas mostravam se completamente apaixonadas, com planos para o futuro; de viagens e eventos simples como um cinema ou um encontro no parque, eu me emocionava. Pois não conseguia traduzir aquilo para mim. Você me deu isso, acredito. Um objetivo, um motivo para lutar e mudar completamente minha realidade. Eu já estava num ponto em que nem desejos eu tinha mais. As compras no mercado eram apressadas, afinal, “a gente sabe do que precisa, não tem porque inventar”. Mesmo podendo inventar, mesmo tendo dinheiro para inventar, eu não o fazia. Mas não sei dizer se era por medo ou o que era. Porque na verdade, eu simplesmente não enxergava nada diferente. No terceiro mês que você estava dentro de mim, o acumulador disse, com um sorriso que demonstrava que aquilo era uma tentativa de piada afetiva; “Você está enorme e apesar de seus seios estarem maiores, eu acredito que você deveria ir ao médico amor, estou preocupado com você”. Hoje em dia tenho certeza de que a preocupação não é uma fala e sim uma ação. No dia seguinte em que me propus ir ao médico e que era um dia de férias para nós dois, só o que ouvi foi um; “Vou colocar a carne para descongelar às 10 para que você possa fazer nosso almoço quando voltar”. No médico o atendimento levou mais de duas horas para chegar. Neste tempo aproveitei para ler Dalloway e ali também senti um glimpse de novidade e frescor da vida. Talvez a vida pudesse ser caótica, mas de uma forma mais leve do que aquela que estava vivendo. O doutor era um homem sério, mas com feições tranquilas. Tinha um ar de preocupação como se visse através de mim. Como se em seu prontuário na tela de seu computador, estivesse disposta em vídeo a razão pelas quais eu vinha ao hospital muitas vezes de madrugada, dizendo que me acidentei na cozinha. A compaixão dele me deixou emotiva e isso somado ao momento em que ele me contou sobre você, me fizeram desmoronar. Não era possível que eu estivesse grávida. Eu não aceitava de maneira alguma. Ao mesmo tempo em que explodia por dentro, tentava me conter por fora, para não alarmar o médico a minha frente. Depois de alguns segundos percebi sua voz abafada, repetindo meu nome diversas vezes enquanto ele batia a caneta nos papéis à sua frente. Me lembro depois de acordar em uma maca, estava com uma agulha enfiada no braço que se conectava à um pacote de plástico pendurada em uma estrutura de metal. Já eram seis da tarde. Todos no hospital já desconfiavam do que se passava comigo e uma enfermeira, com idade mais avançada e com mãos leves e delicadas foi enviada para conversar comigo. “Minha filha, a gente não pode dizer o que está acontecendo com você na sua vida fora do hospital. Eu não quero de forma alguma te constranger ou fazer você se sentir mal pela vida que está levando. A gente sabe que nem tudo é culpa nossa né?” Enquanto ela falava, com sua voz quase que sussurrada e com um cuidado materno que beirava o amor, só o que eu conseguia era concordar com a cabeça e sentir lágrimas que escorriam por meus olhos. “Eu sei que você tem muita coisa acontecendo na vida. Eu já cuidei de você muitas vezes quando você veio aqui e eu entendo muito bem de acidentes domésticos, também costumava viver isso quando era mais nova. Mas agora tem uma criança vindo aí e ela vai precisar do cuidado que eu dou pra você, mas vindo de você.” Hoje quando entrei no hotel pela manhã, vi uma mulher muito parecida com a enfermeira. Há tempos que sigo meus caminhos pelo meu coração, ou por você Maria Júlia. Quando entrei no quarto e vi o cisne feito de toalha na cama, eu soube que você estava comigo. No dia em que contei ao homem sobre minha gravidez, o cisne apareceu diversas vezes em lugares que eu acreditava já conhecer tão bem. Ele estava no tapete da vizinha do terceiro andar, em um calendário antigo de dois anos atrás que ficava pendurado quase que atrás da geladeira, em meio há duas fotos e três páginas de revista, no papel de parede do celular de uma colega de trabalho e até em outdoor recém-instalado que anunciava a chegada de um parque aquático na cidade. Era você o tempo todo. É engraçado quando saio com as minhas amigas do trabalho para um happy hour no fim do dia e as ouço falar sobre tanto que desviaram por ter um mal pressentimento e as coisas são situações que eu tive que sentir até o osso para aprender. A importância de dizer não quando se sente necessário. A sabedoria em cuidar de si mesma quando qualquer bijuteria lhe é oferecida. Eu não as vejo com mágoa, nem ofereço minha história como parâmetro. Pois sinto que, por mais fundo que eu tenha cavado dentro de mim para aprender aquelas lições, agora eu estava ali, com elas, em uma nova linha de largada, me divertindo e sorrindo. Mas há momentos e momentos. Agora, sentada na cama do hotel, preparando me para um evento onde todos aguardam por mim, seguro o cisne de toalha como fosse você meu bebê. Lembro-me do sorriso tranquilo que me deu quando nasceu. Suas mãozinhas apertando meu dedo como que dizendo “Agora você vai ficar bem mamãe”. Você já sabia Maria Júlia. Quando beijei sua testa ainda molhada e senti seu hálito em seu último suspiro. Você sabia. Você trouxe para mim aquele cuidado que a enfermeira disse que eu devia ter contigo daqui para frente. Você trouxe a força de criar um novo ambiente para nós. Ao contar para o homem que você estava por vir, ele foi embora, como se eu estivesse quebrada. Deixar aquele apartamento para trás foi como soltar uma tonelada das minhas costas e da minha alma. A nossa casa, que só tinha seu berço em um quarto com meu colchão. Um fogão antigo e uma geladeira com os pés quebrados. A mesa de quatro cadeiras na sala com um sofá improvisado e o notebook que servia como televisão. Era nosso paraíso Maria Júlia. A brisa que entrava pela janela todas as manhãs. As paredes brancas e limpas que pediam por uma decoração singela e por cores deliciosas. O silêncio no preparo do jantar. A paz no banho e nas madrugadas de sono completas. Eu sei que você nasceu para estar comigo para sempre e onde quer que eu esteja. Eu te sinto e te vejo em todos os lugares minha filha. O meu cuidado é todo seu, o meu amor e carinho é todo seu e agora, cinco anos depois de seu nascimento eu sinto que não é somente uma pessoa que completa mais um ano de vida, mas duas que descobriram fora do tempo e do espaço, o verdadeiro significado de amar. 

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