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Alan

Número Nove e Ulisses


Seu único contato com o mundo era controlado.

Há alguns anos os humanos descobriram sua ilha e começaram a rondá-la com helicópteros e megafones, enchendo sua vida uma vez pacífica de ansiedade e perguntas.

Ele nunca pensara sobre como criava suas peças, como inventava suas criações ou como evoluía a si mesmo. Para ele era um processo natural. Durante a noite imaginava o que ficaria bom na ilha e pela manhã, vindo sempre do mesmo caminho, apareciam suas criações.

Numa noite imaginou um companheiro, alguém que lhe trouxesse desafios. Na manhã seguinte um robô com contador e perguntas com diversas opções apareceu. No início era algo simples, ele brincava de adivinhar a cor de frutas e acertar o nome de animais. Mas com o passar dos dias o robô passou a ter consciência e suas perguntas tornaram-se existenciais. Um ano após sua aparição o robô tinha controle sobre o clima e a vida de pequenos insetos. Depois de uma década o robô tinha controle sobre a vida de qualquer um e seus desafios eram cada vez mais complexos, com opções cada vez mais exuberantes.

Os humanos pararam de tentar acessar a ilha depois do robô criar consciência, pois suas brincadeiras já não eram mais tão simples e dóceis. Diversas celebridades e magnatas perderam entes queridos que nem sabiam sobre sua viagem até aquela ilha, por errar a respostas do desafio do robô.

Ulisses, o inventor era o único que o entendia. Não porque o tinha criado, mas porque passara todo o processo de seu desenvolvimento até aquele ponto ao seu lado. O robô tinha em suas costas um pequeno contador que começou com o número de 1 milhão. A cada desafio feito por ele, este número era reduzido. Não havia limite para seus desafios diários, só o que era necessário era que alguém lhe direcionasse a atenção. O tema era escolhido de acordo com o humor da pessoa que aceitasse brincar, a tecnologia do robô conseguia assuntos que realmente mexessem com o psicológico do sujeitado.

As invenções apareciam continuamente, em um determinado momento ele inventou robôs teatrais. Eles encenavam somente tragédias inomináveis que traumatizavam Ulisses todas as vezes. Um dia os robôs que assumiam qualquer forma assumiram a forma de 100 homens e uma mulher. Quando eles se dividiam, sua forma reduzia de tamanho pela metade, então quando chegaram a este número, estavam minúsculos. A ideia por trás disso era a proteção dos que estavam à sua volta. Como eles tinham um sub nível de consciência, a redução de tamanho impedia que eles tentassem uma dominação do mundo. Se sua multiplicação fosse extrema eles podiam até desaparecer.

Enfim o teatro, os 100 “homens” ajudaram a “mulher” arduamente a treinar durante anos, o robô com aparência feminina chegou à um nível de força incrível, derrotando 5 dos melhores lutadores “masculinos”. Quando já estava forte o bastante para derrotar qualquer um, a robô sabia que não precisava mais treinar e queria agora ser livre sozinha, mas os outros não gostaram nem um pouco da ideia. O que se deu foi uma guerra em turnos de 10 contra um para adquirir o poder de volta. Os robôs “masculinos” sentiam-se agradados enquanto acreditavam ter controle sobre a outra, porém quando ela se demonstrou independente e forte, eles queriam aquilo acabado. A robô conseguiu vencer cinco dos turnos, chegando no sexto completamente ferida e deprimida, com uma força sobrenatural que imitava a força de mães, ela conseguiu derrotar metade do sexto turno, mas sucumbiu logo em seguida. Os robôs derrotados, ao verem seu estado exposto, mesmo que dilacerados, arrastaram se até o corpo junto dos outros 45 para exterminar a uma vez campeã.

Após fazerem as piores agressões contra a robô, todos eles estavam em pedaços e assim como em todas as outras vezes em que se tornavam algo semelhante a uma massinha, eles se juntaram completamente. A surpresa para quem assistia veio quando o robô totalmente recomposto, transformou-se na robô uma vez exterminada. 

Ulisses tinha receio de que o “Desafiador” estivesse aprendendo narrativas com aquelas atrocidades, mas como vivia em um mundo cor de rosa, para ele aquilo de pouco importava.

Dentro de seu âmago, o criador tinha a pergunta de como ele criava aquelas criaturas. Como podia que ele comentava consigo sozinho em sua cabana à noite e na manhã seguinte a criação aparecia pelo mesmo caminho, sempre. Havia perto da praia uma estrada estreita que adentrava a mata para limites que o inventor não ousava explorar. Era de lá que todas as invenções vinham. Ao Norte, logo atrás daquela estrada havia um vulcão que somente fumegava, era como uma ameaça contínua de destruição de tudo aquilo que ele conhecia. Mas ele percebeu o padrão da montanha de chamas, contanto que ele não se aproximasse demais, ela continuava desativada. Era somente quando ele se aproximava que os trovões e calor se manifestavam. Então ele abriu mão de provocar aquele deus adormecido.

Um dia estava caminhando distante de casa, pois havia um robô que criava pequenas missões divertidas pela ilha. Este, mesmo depois de anos existindo, nunca desenvolveu complexidades ou qualquer tipo de consciência. Ele simplesmente andava pela ilha criando missões divertidas que ajudavam Ulisses a se distrair quando estava ansioso demais. Toda vez que iniciava uma missão ele já conseguia assimilar do que ela se tratava. Geralmente quando começava com cores, tratava-se de encontrar alguma fruta pela mata, quando a primeira atividade era encontrar uma pedra, sabia que se tratava de algum animal que havia se perdido. Mas desta vez era algo novo, algo diferente que ele não conseguia deduzir.

Sentiu um pouco de receio no começo, imaginava se aquele robô teria criado consciência também e agora estava tentando pregar uma peça nele. O primeiro item daquela missão era um diamante. Era uma pedra, porém valiosa demais comparada à todas as outras que já tinha visto. Seria algum tipo de animal lendário?

A missão levou quase que a tarde inteira, era o fim da noite quando notou o número nove ao lado do chocalho, o penúltimo item a ser encontrado antes do prêmio. Havia encontrado peças que para ele eram totalmente aleatórias, mas que no fim fizeram total sentido. O tecido com formato esquisito, a cesta com frutas e água, o acendedor de fogo, a tenda auto montável... O prêmio era um pequeno humano que chorava ao lado de uma rocha iluminada pelo robô criador da missão.

Para o robô não importava a questão de gênero, então nomeou a pequena criatura como “Número Nove”. Os cabelos eram ralos e os dedinhos tinham pequenas garras. “Complemente indefeso”, pensou. Agora a missão dele seria maior, teria de investir tempo e cuidado com aquela criatura. Sentiu-se grato ao perceber que as missões do robozinho divertido agora eram todas direcionados ao humano. Sempre com prêmios que envolviam alimentos e itens de cuidado e higiene.

Ulisses não permitia que a criança interagisse com o robô de desafios. Tinha medo da criança invocar o que havia de mais malicioso no eletrônico. Mantinha a pequena criatura distante dos teatrais, não queria que ela visse as tragédias amorosas e absurdos humanos como exemplo de existência. Depois de aprender a gatinhar, a criança passou a explorar a ilha, era grande o suficiente para caminhar, porém era preguiçosa e Ulisses não era exigente.

Foi que Ulisses notou algo surpreendente, a criança era permitida no caminho do vulcão, sem que ele se alarmasse. Número Nove caminhava por minutos para dentro da estrada misteriosa e a fumaça não oscilava nem por um centímetro. Ulisses pensou que descobriria tudo quando o pequeno ser começasse a falar.

A invenção favorita de NN era um pássaro, feito de um metal fino e quase semelhante a borracha. Era completamente maleável e trocava de cor com luzes e o melhor, exalava cheiros doces e adoráveis. O bebêzão aproximava-se do pássaro e ele envolvia se em seu corpinho como um roupão, mantendo somente as asas, que ajudavam a criança a sobrevoar a ilha inteira.

Ulisses entrou em transe após assistir a uma nova trama dos robôs teatrais. Na encenação um dos robôs transformou-se em uma cópia da criança e outro em uma cópia do próprio Ulisses. No decorrer da peça a cópia de Ulisses abusava violentamente da criança, desmembrando partes do corpo, saboreando-se dos gritos de dor, rindo do gosto dos órgãos do pequeno, divertindo-se com os grunhidos que ele soltava após o arrancar de cada dente, e coisas ainda mais aterrorizantes.

O que acontece é que para Ulisses o tempo passava de maneira diferente, quando se deu conta anos haviam se passado e ele estava estático observando o mar a sua frente. Quando olhou em volta, não havia ninguém, nem o robô das missões, nem o dos desafios, nem os teatrais. Assustando-se notou ao seu lado a criança que agora estava enorme, tinha cabelos que encostavam na areia quando ela estava sentada e seus olhos estavam fixos, como os seus, observando o mar, estática na espera do retorno de seu salvador.

Lágrimas, ou óleo, encheram os olhos do robô. “Quanto tempo eu perdi da sua vida absorto em meus medos de que não vi o tempo passar?”. “Quem será você agora que não pude acompanhar a complexidade de seu desenvolvimento?”. “O que foi que eu fiz passando tanto tempo absorto nestes medos que de nada significavam?”

O inventor que tinha uma consciência talvez mais complexa do que a humana se via deprimido. Piorou a situação quando a criança começou a apontar-lhe todas as dificuldades que passou para sobreviver sem ele. Como todas as invenções inferiores foram sua companhia em dias difíceis. Atacou o inventor com todas as suas dores e insucessos da vida. Era tudo responsabilidade dele e de sua ausência. Era a primeira vez que Ulisses sentia aquilo, era uma vontade de autodestruir-se de não existir mais por ter falhado tanto com a pequena criatura. Queria que suas peças explodissem, queria caminhar para o vulcão para destruir tudo à sua volta, mas notou que já havia destruído tudo sendo ausente, seria um carrasco se acabasse até mesmo com a possibilidade dos outros de se recuperar de suas malfeitorias.

Não é possível descrever o que ele sentiu no que se passou nos instantes seguintes. Choque era o mínimo, terror o mais próximo, mas ainda não suficiente. Quando olhou para cima, o bebê sobrevoava sua cabeça no pássaro que sempre o envolvia no macacão de metal para fazer-lhe sorrir. Olhou em seu relógio de controle da ilha e viu que a criança acabara de sair de perto do robô dos desafios. 

“O que é isso ao meu lado senão a criança?”

Em instantes o “humano” ao seu lado, que a alguns minutos o traumatizava com os discursos mais potentes e dramáticos já ouvidos, desmantelou-se na forma dos teatrais. Ele, ainda com lágrimas nos olhos, avistou o robô dos desafios que o encarava com um sorriso sádico. De alguma forma o Desafiador captou os medos da criança e aproveitando-se da fragilidade do inventor, resolveu brincar com ele. Mas o que será que o bebê havia selecionado? Ainda havia números no contador do criador de desafios. Temeu pela vida da criança, teria ela escolhido a opção correta?

A resposta veio em instantes quando o criador acompanhou o pássaro que carregava o bebê. Até o que sabia, robôs não podiam se aproximar do vulcão, mas algo diferente aconteceu quando o bebê estava envolvido no pássaro tecnológico. O vulcão ativou-se, mas a lava permanecia no topo, como que semiativo.

Como que entendendo que um robô e um humano eram metade da regra.

O terror do drama que acabara de assistir fora incomparável com o que ele sentiu quando viu o neném sendo arremessado no vulcão. Enquanto a criança caía a ave mecânica usou de uma velocidade igualável a do som, para distanciar-se, pois em instantes a ilha poderia ir toda à poeira caso ficasse somente um robô próximo ao vulcão.

O grunhido da criança queimando nas chamas do vulcão foi transmitido por toda a terra envolta em água. A fumaça parecia formar uma caveira assombrosa, mas isso já era a mente perturbada do robô vendo coisas.

Novamente o mundo à sua volta parou. Mas desta vez não era um transe por trauma, todos os robôs, o ar, as ondas, os animais, tudo estava estático. Sentiu então um vento muito forte vindo do caminho de onde surgiam as invenções, a estrada que para ele era feita de grama, iluminou-se inteira, mostrando que tudo ali era uma projeção. De longe ouviu engrenagens girando e o que parecia uma porta se abrindo. Uma luz que subia até atravessar os céus apareceu e ele sabia que dali viria alguma coisa.

Era a resposta para todas as suas perguntas. Era a solução para sua criação sem esforço. O que vinha por aquele caminho era quem de fato criava todos as invenções. Era quem ouvia os balbucios de Ulisses durante a noite. Alan, o criador.

Alan era um homem magro, de um metro e oitenta e poucos de altura. Com a pele negra e cabelos escuros, lábios carnudos e orelhas maiores que o comum que seguravam um pesado óculos de lentes de garrafa, o homem caminhava em direção a Ulisses com pavor e tristeza nos olhos.

O homem sussurrava algo que Ulisses não conseguia captar com seus microfones, mas que ao dar zoom com seus olhos que eram câmeras, conseguiu ler:

“Era meu filho, era meu filho... Aquele era meu filho, Deus!”

Ulisses se via congelado com tudo o que se passava ali, seria somente mais uma encenação dos teatrais, o que estava acontecendo?

Por mais perdido que se sentisse, havia nele um mínimo sentido de alívio, pois estava diante do arquiteto de tudo aquilo. Ele, por mais aterrorizado que parecesse, devia ter controle sobre tudo na ilha. Os outros robôs ainda estavam estáticos, imóveis como que desligados e somente Ulisses conseguia se mover ou sentir.

Quando Alan aproximou-se do robô guardião, que há minutos pensava ser o criador, ajoelhou-se. Não com veneração, mas com dor e terror. Estava desolado. Seu filho estava morto. Incinerado por uma de suas invenções. O homem esbravejava sons nunca ouvidos. Era uma dor cortante. E Ulisses compartilhava dela.

Estava tão feliz por finalmente encontrar seu criador, tinha tantas perguntas, queria entender tanto do que se passou nos últimos anos, mas o homem a seus pés estava devastado.

Manteve-se em silêncio em pesar e distanciou seu olhar, admirando a paisagem, abstendo-se do som de dor de um pai. Tentou imaginar o som das ondas que agora estavam congeladas. Observou o deck onde passou os primeiros dias de interação com os humanos respondendo perguntas, onde mais tarde brincava com a criança, onde a ensinava a pescar, mesmo que ela não conseguisse nem se manter em pé sozinha.

Havia embaixo do deck, diversos pilares de madeira, mas um deles era especial, pois havia nele a marca de giz que o bebê fizera num dia em que sobrevoava a ilha no pássaro assassino. Deu zoom com seus olhos no desenho e quando estava próximo o suficiente, notou um pacote preso no pilar, o pacote movia-se. Procurou pelo robô teatral e não encontrou, observou o desafiador e ele estava desativado, havia somente uma luz lilás ativa nele, luz esta que ele nunca tinha visto antes.

Desvencilhou-se do humano em prantos e caminhou em direção ao deck. Seus passos eram rápidos e agora com a terra sem interação, caminhava como que em uma placa lisa. Ao aproximar-se do pacote ouviu e soube, a criança não estava morta.

Elevou-se com suas pernas estendíveis e alcançou o pacote, estava certo. O teatral havia novamente pregado uma peça em todos. O robô havia conseguido assumir a forma da criança maior e do bebê ao mesmo tempo, porque de alguma forma aprendera a se dividir em partes de tamanhos diferentes. Mas o que era aquilo? Toda aquela situação era insana. Por que tudo aquilo estava acontecendo? Seria uma ilusão de sua programação?

Olhou para o caminho de onde veio e soube. O Desafiador segurava o real inventor, Alan, o humano, todo estendido como que a ilustração do homem vitruviano com o corpo estendido num círculo. Com um som quase que ensurdecedor anunciou. 

“Você sempre teve o desejo de descobrir quem era seu criador Ulisses, aqui está! Ele é este. Você deve estar contente.”

- Por que você o está segurando desta forma? Porque fez aquilo com o teatral, para que fingir que matou a criança?

“Esta era a única forma de atrair o criador para fora. E você o queria, você ansiava mais do que todas as outras invenções toscas que vem criando nos últimos tempos.”

- O que quer com isso agora? O que devo fazer? Solte o Criador.

Como em todos seus jogos, o Desafiador, ofereceu suas opções, mas estas estavam criptografadas. As letras não faziam sentido nenhum, mas como compensação, desta vez havia somente duas opções. Uma escrita em vermelho e outra em azul.

“Cabe a você o destino de seu criador Ulisses, escolha agora e salve ou mate o homem”

O Guardião sabia que o robô brincava com a cabeça de todos que jogavam com ele, ainda pior seria naquela situação extrema. Ele tinha certeza de que o vermelho significava salvar e que o azul, como que por tortura seria o “assassinar”.

- O vermelho, eu quero a opção vermelha!

“Você tem certeza?” - perguntou o desafiador.

- Absoluta, é isto o que quero.

“Certo, está feito!”

Com um golpe o robô repartiu o homem ao meio com uma lâmina dupla que saia da barriga do humano para as extremidades da cabeça e pelves. O bebê que agora estava no colo do Guardião começou a chorar em gritos pelos sons que seu pai fazia ao morrer.

Incrédulo com o que acontecia, Ulisses checou o painel de gabarito que ficava nos pés do robô desafiador após o mesmo tomar a decisão. Ulisses havia escolhido a opção correta para salvar seu criador, para obter as respostas e afeto que tanto desejava. Mas não havia o que ser feito. A luz lilás indicava que o Desafiador havia concluído sua necessidade de obediência a quem brincava com ele.

A decisão de matar veio exclusivamente do Desafiador, mas a inspiração veio do Guardião. O transe que ele se imaginara quando viu os teatrais encenando a morte da criança fez com que seu código desejasse a sua própria morte, a morte do criador de todos aqueles robôs.

Como ele era somente o Guardião, para atender seu pedido, o Desafiador teve de criar todas aquelas artimanhas.

No fim, o desejo mais oculto e poderoso fora atendido. 

Apesar de ter conhecido seu criador, seu sonho durara pouco, pois sua energia havia sido investida por mais tempo em seus pesadelos.


Alan - O Criador

O Desafiador

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