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O trem de meio-dia

Os dois esperavam em lados opostos da estação pelo mesmo trem que não demoraria a chegar

Yan chegara às dez para pegar o trem

Havia planejado seu dia e a expectativa para a viagem era grande, sabia o que faria em cada ponto de parada, tinha programas divertidos em mente para passar o tempo em alegria

Bernardo estava ali por acaso

Havia bebido demais na noite anterior e acabou em uma festa na casa do primo do irmão do amigo de um amigo dele

Chegou na estação quase na hora da partida do trem e entrou cambaleando em seu vagão

Quando se sentou em sua poltrona tornou-se são ao encontrar os olhos de Yan que o fitavam como alguém que o conhecia há séculos

O rapaz a sua frente começou a conversar e trocar ideias sobre o roteiro da viagem e sobre tudo o que era possível fazer no trem

Bernardo que tinha ainda um pouco de ressaca da festa anterior, sentia-se agora em outra, num show de uma pessoa só

Yan tinha ânimo e vontade de partilhar tudo o que havia descoberto

Ele estava eufórico e alegre por ter encontrado alguém com quem dividir todas aquelas informações que tinha preparado para a viagem

Bernardo que levaria tempo para chegar em sua estação se via encantado, o garoto tinha talento para o diálogo e uma habilidade irrepreensível para contar histórias

Sua voz doce e seu sorriso inocente traziam um calor no peito que Nardo não sentia há tempos

Yan contou sobre o que faria em algumas das paradas pelas quais passariam e como Bernardo poderia participar junto

O contador de histórias dispunha de algumas moedas e com elas comprou chá para os dois numa das paradas do trem

Quase perdeu o carro, mas alcançou os chás pela janela para Bernardo e correu atrás da última porta do trem

Yan tinha imaginado que encontraria alguém legal, mas não conseguia acreditar que estava se apaixonando

Bernardo parecia cansado, mas a energia de Yan era contagiante e ele adorava ouvir histórias, mesmo não tendo muito a adicionar… Era como que espectador de tudo o que acontecia

Após algumas horas os dois já se viam íntimos. Nardo já havia contado algumas de suas histórias e sentia-se confortável ao lado de Yan

Não tinha muito o que dizer, mas o outro era romântico e iludido, tornava as poucas palavras dele em poemas e criava significados em sua cabeça

Bernardo sabia que sua hora de descer do trem estava chegando e sentou-se então com outros rapazes

Com eles se abriu, mais do que com Yan, e divertiu-se de forma diferente

Conheceu os outros vagões que Yan o havia prometido mostrar, porém sozinho, até conhecer outros garotos que lhe mostraram mais outras histórias

Voltou então para o vagão onde Yan estava descontente, ainda assim, o jovem de espírito gentil aceitou conversar de novo, já que estava no trem por mais longo tempo

Novamente empolgou-se e começou a romantizar as atitudes de Bernardo. 

Entendia a pressa, ele desceria em uma estação diferente… O que lhe causava confusão é que ela nunca chegava

Conversou um pouco mais, sorria, mas agora com receio

Suas conversas agora já não eram tão soltas como no início, a empolgação era a mesma, porém agora havia controle. Como na série de robôs do faroeste ele desligava suas emoções sempre que sentia algum distanciamento

Desceu mais algumas vezes e gastou seus trocados em cafés e bolos

O outro quando ele voltava não estava na mesa, mas voltava de outros vagões com a boca suja de chantili e com cheiro de morango

Yan dava de ombros e oferecia o bolo que trouxera, o mais fresco da venda e o café que ele mesmo preparara na cafeteria da estação

Então, foi que decidiu que seguiria com seu roteiro, independente de Bernardo

A viagem há muito havia sido pensada, planejada e calculada

Havia muitos vagões a serem vistos e muitas pessoas a se conversar

Bernardo então o seguia por cartas, bilhetes secretos que ele lia escondido

O menino sentia agora que suas andanças pelo trem eram um exagero assim como suas conversas aleatórias

Sentou-se em um vagão deserto e comeu um croissant de frango com requeijão

Bebericou goles suaves de um chá de morango com champanhe branco

Ao observar a paisagem havia pássaros que pareciam voar na velocidade do trem

As árvores corriam e diziam algo em "arvorês" que o rapaz não entendia, mas que o reconfortava naquele momento

Voltou então um vagão em busca de sua mochila

Encontrou a mochila, mas não o que havia perdido

Voltou mais um vagão procurando agora seus óculos e nele encontrou facilmente os protetores do sol, porém não o que havia perdido

Voltou outro vagão buscando por suas luvas…

E depois outro procurando por seus sapatos…

Mais um em seguida onde buscava o colar que ficava em seu pescoço e no anterior buscou pelo casaco que o aquecia no frio…

Voltou vagões e mais vagões, mas somente no último encontrou o que estava perdido

Em cima da mesa onde havia sentado sozinho contemplando o dia ensolarado de meio-dia na primeira estação de trem

Antes mesmo de conhecer Bernardo que, pelo que lhe disseram, já há um tempo descera do carro

Em cima de uma toalha bordada em fio de ouro e coberta de linhos em tons de rosa pastel com azul ciano, seu coração

Pulsando como nunca, talvez pela emoção que sentia ao vê-lo

Uma vez que estava com seu coração no peito entrou no vagão onde havia perdido seu colar e notou que ali havia um homem esbravejando descontroladamente sobre algo que ninguém entendia... Ao invés de entrar na discussão ou sentir-se mal por deixar a cena sem resolver nada, sentiu que estava completo e que aquela situação nada tinha a ver com ele

Quando passou pelo vagão onde seus sapatos há minutos estavam perdidos embaixo de um dos bancos, caminhou com um pouco mais de confiança. A última vez em que esteve no vagão, conversou entre assuntos com Bernardo, com uma senhora que lhe falava algo sobre a filha. Desta vez sentou-se e dedicou à ela um tempo para ouvir. A senhora contou-lhe sobre a filha que há alguns meses resolvera não se casar. Ela contava que a jovem mulher vinha pensando sobre atitudes do noivo que não a agradava, mas que todos à sua volta a convenciam de que o casamento era maior do que aquilo

Um dia em uma sorveteria, ela, por vontade de agradar o outro, decidiu tomar o sorvete do sabor que ele havia lhe decidido. Essa foi a situação que passou por sua cabeça quando disse “Não” enquanto o padre perguntava se ela aceitava o homem em casamento no altar

Sua vida não seria de renúncia, sua vida seria de sorvetes do sabor que gostava e somente de ‘Sims’ para aquilo que lhe fazia o coração bater de verdade

Continuou seu passeio pelo trem e no vagão onde havia encontrado suas luvas uma criança vinha correndo em sua direção. A mãe do menino corria atrás dele o repreendendo: “Micael, não corra! Você vai cair...!”

A criança quando estava quase que de frente para Yan, tropeçou, mas antes mesmo de cair, o rapaz a segurou e a levantou no ar, girando uma e outra vez. A mãe era uma pessoa leve e riu da situação. Pegou a criança no colo e apreciou do momento de alívio, a girando outra e mais uma vez

No novo vagão enxergou um casal e sentiu o começo de um aperto no peito

Os dois rapazes se beijavam e tinham fones de ouvido, dividiam, um em cada orelha. Quando os dois sentiram o olhar de Yan, chamaram o mesmo para uma conversa

“Como pode que todos aqui são tão leves?” – pensou Yan

- A gente te viu passando por aqui hoje e ontem também... Você parecia perdido ontem e hoje enquanto corria lá para trás, nos sentimos preocupados. Você tinha a energia de um garoto que tentou beijar um de nós. Mas agora você parece inteiro...

-Não sei dizer – continuou o outro garoto – Você parece estar como a gente se sente quando estamos juntos. É diferente... É bom

-Ah - suspirou Yan com um sorriso cansado - Muito obrigado por ver isto em mim meninos. Esse trem às vezes fica uma loucura né?  - Agora ele já se sentava no banco à frente do casal - Estou me sentindo tão exausto... Inclusive, fiquei muito curioso, reparando na felicidade de vocês... Vocês já viram muito do trem? Como conseguem se manter juntos no meio de tudo isso?

-Veja... – O rapaz que tinha tirado o fone começava a dizer – Fernando já viu quase todos os vagões deste trem, daqui para frente e desde o começo, mas eu, uma vez que cheguei aqui, já tinha visto sobre o que precisava e quando encontrei Fernando sabia que não precisava de mais. Eu às vezes volto alguns vagões e ele as vezes vai alguns a frente, mas você vê essa luz? – O rapaz apontava o dedo para algo reluzente que ele não sabia distinguir e que dava a volta na cintura dos dois. – Podemos estar separados, mas sempre sinto ele e ele me sente. Eu estou feliz aqui...

-É, eu não sei explicar – continuou Fernando – O Guilherme gosta de ouvir minhas histórias e eu adoro contar as coisas para ele. Eu amo conversar cozinhando e ele adora ouvir me ajudando. Eu acredito que encontrei ele e ele me encontrou

Depois de ouvir mais um pouco sobre a história dos dois sentiu que eles poderiam ser o símbolo de um amor que ele ainda não tinha vivido. Eles seriam a referência quando ele sentisse aquele aperto no coração. Eles seriam a verdade sobre a possibilidade da existência de um amor no trem

Quando chegou no vagão onde estava sua mochila, descansou. Abriu-a e pode ver que Bernardo havia deixado com ele, tudo o que ele havia uma vez o oferecido. Satisfez-se dos lanches favoritos que comprara mais cedo para dois e nunca esteve tão contente por saber tão bem de seus gostos e, também, por ter sido generoso no passado, aquilo tudo agora era só dele

Sabia que passaria a noite por ali, o vagão agora estava mais vazio. Na verdade, aquele era um dos vagões mais incomuns de se descansar, ou até mesmo de permanecer. Ali geralmente as pessoas encontravam suas mochilas cheias de surpresas desagradáveis dos vagões anteriores e foi neste que Bernardo resolvera descer dias atrás

Mas Yan encontrou ali conforto, encontrou em si, o show que Bernardo havia lhe dito que era. Encontrou em seu âmago, o seu próprio lar

Havia nele um sentimento de nostalgia e ansiedade alegre pelo futuro

Voltavam a ele as ideias que tivera antes de embarcar no vagão

Notou que toda experiência até ali o tinha sido tão recompensadora, ou talvez um pouco mais, quanto imaginara

Os vagões a frente prometiam surpresa e ele prometia a todos o delicioso desejo de descobrir.

 

Comentários

  1. Que história encantadora, deixou minha mente tranquila e satisfeita, mas meu coração mais quente e pulsante. Seus contos dão vontade de viver! Quero ser como Yan ♥️🥰👏👏

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  2. Estações , vagões ,são surpresas que a vida nos reserva o importante e saber viver cada uma delas ,,,,uma linda maneira de descrever a vida em nós

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