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As pontes do louco


Ele tinha um segredo que não se atrevia nem a pensar quando estava cercado por outros. Era algo dele. Um tesouro escondido nas profundezas de sua mente e que ele preferia manter num abismo que nem ele mesmo era capaz de conceber.

Morava só, em uma casa, numa montanha, quase que uma ilha cercada por mil pontes. Todas elas eram caminhos distintos de pessoas que conhecia toda a vez em que se aventurava no mercado ao pé da montanha. 

Para acessar suas particularidades era necessária uma ponte e muitos criavam com fervor pontes de madeira, ferro e até ouro. Pois então que com o passar do tempo, passou a usar como métrica o material que seus visitantes usavam para acessá-lo. Aos que construíam pontes com galhos e folhas secas de árvore, investia pouco ou quase nada de seu tempo. Por mais que lhe prometessem juras de uma ponte maior no futuro, limitava-se a consentir, afirmando que se via ansioso por aquele dia, mas mantinha-se fechado em seu chalé. 

Em seu jardim cresciam flores distintas. Eram flores que não se encontravam em canto algum do mundo. “É parecida com essa aqui que se chama de tal forma e que exige tal tratamento” dizia um fulano qualquer. “Minha mãe tinha uma igualzinha aquela que fica na parte debaixo da janela do seu quarto, acho que seria bom você colocar veneno nela, elas gostam” gritava outro como se o tom de sua voz fosse impor algum tipo de validade as suas palavras. 

No começo até seguia os conselhos, acreditando que as histórias mirabolantes não podiam ser mentira, afinal, quem haveria de jurar no túmulo de seu pai que o que estava dizendo era verdade e acabar ainda mentindo? E era possível. Depois de perder sua centésima flor para as falácias daqueles que diziam conhecer tanto sobre flores, passou a confiar ele mesmo, nas medidas que sempre tomou, seguindo seu coração. 

O jardim estava belo e as pontes seguiam sendo construídas e destruídas diariamente. Com a mesma velocidade que alguém demonstrava interesse em conhecer os segredos daquele lugar sublime, aqueles que, haviam ou não, dedicado tempo na construção de suas travessias, se iam. As estruturas quando abandonadas por um grande período haviam de cair sozinhas, mas nem isso o louco sabia no começo. 

Quando percebia que o matagal tomava conta das estruturas abandonadas ele se compelia e passava meses juntando galhos, consertando rachaduras e limpando a grama alta que quase impedia a passagem de alguém. Mas ninguém haveria de passar. Mesmo depois de limpa, mesmo depois de melhorada as vezes com materiais que ele comprava na confiança do mercador, o caminho continuava vazio. 

Aprendeu então a deixar as pontes caírem por si só. E havia alívio quando acontecia, pois abria-se espaço no horizonte para deleite de novas miragens. Quando caiam ao rio que cercava sua ilha, os materiais era entregues a ele por um pássaro mágico, que transformava os entulhos em adubo para suas plantas excêntricas. O pássaro, lembrava-se ele, chegou em uma noite de chuva, quando, depois de ter dilacerado parte de seu peito em algo que parecia uma brincadeira no início, viu-se estático no chão como se o fim do mundo tivesse chegado. 

O pássaro falava e andava como gente. Tinha asas brancas com filetes dourados nas pontas e quando caminhava, as mantinha seguradas na parte de trás de seu corpo, passando uma impressão de senhor que sabe tudo, aquele que julga e entende com neutralidade e sem emoções. Mas, apesar de toda sua sabedoria e despretensão, mostrava-se emotivo e sensível aos desejos e sonhos do louco. 

O louco quando perguntado nunca sabia dizer o que ou quem de fato ele era. Era uma mulher? Um homem? Uma criatura celeste ou talvez um demônio? Todas as vezes em que buscava por ele mesmo, perturbava-se e corria para o jardim. “As plantas haverão de me salvar” Vestia roupas simples como que vestidos sem corte ou cor. Eram de um amarelo queimado e desgastado, mas que lhe davam um ar de espírito livre. 

Suas visitas sempre aperequitadas, vestiam as roupas mais caras do mercado, sempre com acessórios novos que exibiam com o orgulho e que, na maioria das vezes, nem faziam ideia de como usar. Mas ele não se abalava. Tinha em seu recanto tudo o que precisava para criar seus próprios acessórios. 

Numa manhã em que tomava seu café, sentado na mesa que ficava ao tempo, recebeu uma carta de um Deus menor. Era um companheiro do Deus que protegia suas terras e lhe avisava que dali algum tempo chegaria até ele uma carruagem com dois baús, ele que se preparasse e que mantivesse com ele somente o necessário, pois faria uma viagem extraordinária. A carta vinha com um doce saboroso que continha em sua embalagem uma mensagem: “Não se preocupe com nada, a viagem já está paga, você é um convidado de honra.” 

Tinha deveras ansiedade quando se tratava de coisas fora de seu controle e nas primeiras semanas que sucederam a chegada da carta se viu limpando as pontes abandonadas novamente. Tinha que fazer algo, então que fosse algo que sabia fazer. Podia conversar com o pássaro mágico que se empoleirava nas árvores próximas ao homem, preocupado, mas não o fazia. Podia cuidar das novas plantas e flores que surgiram dado o cuidado com os adubos encantados, mas também o evitava. Podia até aprimorar as pontes que se mostravam tão movimentadas, com visitantes que traziam presentes incríveis e excitantes, mas até isso lhe passava batido. 

Foi então que algo surreal lhe aconteceu. Algo que o fez esquecer do pássaro e das plantas. Da ansiedade e de todo o medo do que haveria por vir. Alguém havia construído uma nova ponte. Mas não era qualquer alguém e não era qualquer ponte. Era, pelas palavras do próprio forasteiro, um semideus que vinha para lhe contar novidades sobre a viagem. Construíra sua ponte com diamantes e imediatamente, o louco viu se desesperado. 

Pensava sobre qual era o melhor chá que podia preparar para o semideus. Qual colcha tinha sido lavada menos vezes depois da compra. Quão limpa estava sua casa e quão organizado estava o jardim.  

Tratou de destruir pontes que não eram muito utilizadas e até algumas que tinham um movimento considerável. “Agora meu valor é o de uma ponte de diamante” pensava ele entusiasmado. As pessoas do mercado haveriam de ver aquilo. Como sua montanha era importante. Alguém colocou diamantes nela. 

O pássaro observava tudo de longe. Enquanto o louco cuidava de todo o trabalho que uma vez era seu, passou a entreter-se com o jardim. Cavando por horas a fio sem se cansar. Em busca de algo que sabia existir ali e que seria a única coisa a despertar o louco. 

Pois que o semideus passava muito tempo na montanha, no vale do louco. Conversava sobre assuntos diversos e a noite, dava shows de luz no céu que distraiam o jovem enquanto praticava suas artimanhas. A viagem fora adiada algumas vezes, pois o louco se via na obrigação de retribuir as visitas que recebia do celestial. Todas as vezes em que chegava, chamava a atenção de todos nas outras pontes e de fora da montanha. Ele havia sim de retribuir. 

“Sinto que devo diminuir minhas visitas, a carga que sinto quando chego em sua ilha está muito pesada. É eu colocar os pés na grama depois de minha ponte que me sinto triste e sobrecarregado, espero que me entenda.” 

A promessa de que diminuiria as visitas era dita diariamente. O louco via-se em parafuso, pois não entendia o que o semideus queria dizer. A carga? Seria toda a sua preocupação em manter tudo perfeito para a divindade? Seria a bagunça que o pássaro fazia no quintal? Ou as plantas teriam crescido demais? Seria, talvez, que a quantidade de pontes ainda estivesse demais? Devia ele destruir mais ainda para agradar ao adorado? 

Como que em um acidente, onde percebe-se a gravidade da situação somente quando as rodas estão atrofiadas dentro de seu estômago e os cavalos relincham por dor e desespero, notou-se. A energia carregada era tudo aquilo. Todos aqueles pensamentos de perfeição e de cuidado demais. Era sua mente trabalhando o tempo inteiro para manter sua dignidade perante o semideus e seu bem-estar em seu próprio lar. Estava fazendo demais. 

Quando deixado pelo ser divino naquela noite, prometeu a si mesmo, em silêncio, que resolveria toda aquela confusão. Meditou. 

Sentou-se próximo a cachoeira que passava logo atrás das árvores que cercavam sua casa, beirando o precipício quase que próximo demais do abismo para seu próprio conforto, mas consciente de que estava indo para manter sua mente relaxada, porém alerta. 

Respirou profundamente para encher seus pulmões. Segurou o ar por alguns segundos e saboreou o oxigênio como que um doce em sua boca. Soltou o ar sonoramente, esvaziando seus pulmões, livrando-se de todo o açúcar do doce que experimentara a segundos atrás. Sua mente que estava em turbilhões, tranquilizou-se. Alcançou em seu bolso a embalagem que já quase se esquecia e que carregava a mensagem que não devia ter esquecido nem por um segundo. 

“Não se preocupe com nada, a viagem já está paga, você é um convidado de honra.” 

O semideus deve ter sido, inclusive, uma resposta a toda a minha organização. 

Na manhã seguinte, consciente de todo o seu ser e de tudo a sua volta. Reestruturando as pontes que uma vez havia destruído sem necessidade, recebeu o semideus com a mesma cara emburrada de sempre. “Quase não aguento entrar hoje, a carga está pesada demais, o que é que anda fazendo por aqui? Algum tipo de trabalho maligno?” 

A dinâmica de meditação e julgamento seguiu-se quase que por dois anos. O louco entre picos e vales, julgava-se e reestruturava-se completamente. E o semideus enxergava o excesso em todo o lugar. O louco via-se completamente insano. 

A ponte de diamante. 

O semideus e as luzes mágicas durante a noite. 

O pássaro que cavava durante horas e dias a fio, em busca do segredo do louco. 

Sentindo que já não merecia o jogo que se dava ali, que o palácio que chamava de casa o havia engolido e que as plantas exóticas que tanto elogiavam-no pelo cuidado já morriam por toda sua energia pesada, jogou-se. Na noite em que foi meditar, ao invés de sentar-se à beira do precipício para concentrar-se no som da cachoeira, notou as pedras distantes na queda do rio e invejou-as. As pedras não têm pontes sendo construídas e destruídas o tempo inteiro sem descanso para lhe acessarem. Quero ser uma pedra. 

Acordou em sua cama, na manhã seguinte, ouvindo o pássaro escavar. O havia acontecido? Será que fora tudo um sonho? Então ele não havia se matado. Que baita pesadelo. Caminhou bocejando e espreguiçando-se até a porta e reparou no pássaro, no galho da árvore mais próxima com algo cintilante em seu bico e um olhar de urgência, como quem precisa conversar imediatamente. 

“A energia está cada vez mais pesada neste lugar, quase que não desço dos céus para lhe visitar hoje” repetiu o semideus. O louco passou a desconfiar. 

Havia algo de perturbador na forma como o “semideus” falava repetidamente e tranquilamente, todos os dias, a mesma frase. O sonho de sua morte. A viagem que não havia notícia mais sobre a chegada. O pássaro com um diamante no bico. 

Fez o café e os bolinhos de laranja com creme de limão para alegrar seu visitante. Ordenhou a vaca naquela hora e serviu o maior copo para seu companheiro. Estava tudo certo por ali. As peças começavam agora a se juntar lentamente. O “semideus” que me aguarde. 

Quando se despediu, com um suspiro ainda maior que dos dias anteriores, suplicou: 
"Se continuar assim, amanhã acredito que não venho.” Com a cabeça baixa e com as mãos suadas o louco desculpou-se e garantiu que no dia seguinte as coisas estariam melhores. 

Estava só, ao pé de sua porta, observando a criatura cintilante se afastar. Suas vestes sempre impecáveis, feitas do mesmo material da ponte, mas como que transformado em tecido. Caminhava confiante, uma confiança que o louco admirara, mas que agora tomava a forma de algo vil, que ele quase que se julgava por não ter reparado antes. 

Teve com o pássaro naquela noite e conversou sobre segredos imaculados. Sobre sonhos que tivera nos últimos dias e sobre suas desconfianças. O pássaro concordava toda vez e no fim da conversa adicionou, confidenciando de volta que havia descoberto o grande segredo do louco. 

Quando o sol raiou, ouviu seus animais despertarem com os sons de todos os dias, o pássaro, entretanto, não cavava. Estava deitado ao seu lado, exausto, como quem tivesse trabalhado a noite inteira. Ele mesmo, o louco, estava destruído, suas mãos inteiras calejadas de todo o trabalho que tivera na noite anterior. “Eu que esteja certo, eu que esteja certo” pensava ansioso enquanto encarava o teto de seu quarto maravilhoso. 

Nunca se tinha ouvido, até aquele dia, o som que se dá quando uma montanha se racha inteira ao meio, explodindo em mil pedaços no ar, criando uma barreira expansível de som visível ao olho nu. A montanha do louco estava segura, o som vinha na verdade, de sua desconfiança e do pássaro. 

Na noite anterior os dois juntaram-se e com os acessórios e ferramentas que o louco criava há anos, desmontaram toda a estrutura de diamante da ponte do “semideus”. Deixaram somente as singelas madeiras da estrutura, e com a mágica do pássaro deram à plástico a aparência de diamante. 

O que se comprovou foi que a carga e todo o peso que a “divindade” reclamava vir do louco, estava nela mesma. 

“Veja pássaro” confidenciou o louco abaixo das estrelas e do luar encantador “Desconfio que o semideus não é quem afirma ser e tenho de lhe contar meu maior segredo, tenho em meu quintal, em algum canto que não sei dizer, todo o diamante do mundo.” 

A criatura que morrera instantaneamente ao chegar ao fundo do precipício, criou uma névoa escura e malcheirosa que tomou conta de todos os cantos do mundo por horas a fio. Não tinha nada de semideus e era sim um ilusionista que também usava plástico modificado para criar a ilusão de suas vestes. 

“Encontrei seu segredo tem anos louco querido! O diamante utilizado para construir sua ponte foi o que encontrei em seu jardim. Enquanto se distraia atribuindo ao outro o que seu, me mantive calado, a caminhada é toda sua. Inclusive, o caminho lhe fora construído para a viagem que lhe fora prometida. Mas eu não podia dizer nada. Cuidei das plantas e pontes no tempo em que você buscava por si mesmo, nessa luta infindável com o seu próprio demônio.” 

O pássaro agora tomava uma postura ereta e estava maior do que o louco lembrava que ele um dia havia sido. 

“Diga-me então louco, agora que sua jornada com seus demônios e matérias chega ao fim...” 

“Quem é você?” 

Comentários

  1. Uma reflexão em busca daquilo que somos , e do que realmente queremos ser !

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