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O carteiro

Sabia quando acordou às quatro da manhã que aquele seria um dia difícil. Mandou mensagem para sua amiga que nunca respondia, mas que sempre aparecia quando ela precisava de ajuda. 

"Eu sei que hoje não será fácil pra mim, você poderia por favor aparecer?" 

A mensagem apareceu como enviada às quatro e doze da manhã, recebida às quatro e trinta e seis e visualizada às quatro e cinquenta e dois. 

Levantou-se, pois sabia que seria inútil tentar voltar a dormir, seus sonhos a abandonavam quando sua mente estava para receber uma tempestade. 

Até o momento era só um pressentimento numa Quarta-Feira de Cinzas em que tantas memórias rastejavam sórdidas para os confins de sua cabeça. 

Seu gato estava fora, havia dormido no telhado novamente com toda a certeza. O gato, assim como a dona, adorava contemplar a vista das árvores à frente da casa. A mulher que agora caminhava lentamente para a cozinha, com todo o receio de quebrar seu quadril, podia sentir o cheiro do chá de maracujá com hortelã que estava prestes a preparar. Desde a juventude sentia um pigarro em sua garganta que nunca teve explicação. Aos 32 decidira parar de tomar todos os remédios que os médicos receitavam em vão, ao invés da cura só o que ficava eram os efeitos colaterais dos medicamentos cada vez mais fortes. 

Alcançou com alguma dificuldade o mel que ficava na bancada em cima das facas e enquanto a água esquentava, meditou. Pensou sobre o carteiro repentinamente, Francisco seu nome. Era um senhor já de idade avançada, talvez mais velho que ela, que vinha todas as segundas, quartas e sextas para entregar as correspondências. Nossa donzela adorava ler livros e comprava pelo telefone todos os títulos de infanto-juvenil do sebo da cidade. Por vezes Francisco, após entregar as correspondências, sentava-se em uma pedra, do outro lado da rua, encarava o grande lago e por ali ficava. Recuperando o fôlego, ou talvez chorando, pois, nossa leitora podia jurar que seus ombros se moviam como se ele estivesse soluçando. Sempre tomando algum tipo de chá, recheado de mel, ela pensava: "Deve estar admirado com a natureza". 

Ainda na penumbra do dia, sentou-se na varanda com sua xícara e pode ouvir Ramaleão correr pelo telhado somente para aconchegar-se em seus pés. O gato sempre se enrolava no xale que a doce senhora usava para cobrir suas frágeis pernas. 

Ela acreditava que pela época em que fora cozinheira, mesmo que passasse horas fora com a xícara de chá, a temperatura do líquido nunca caía. Suas mãos envoltas na porcelana mantinham-se quentes num nível humanamente desafiador, mas ela adorava, sentia-se uma super-heroína de algum tipo. 

Pelas sete, Francisco passaria, mas o sol ainda não havia colocado nem uma unha de seus raios no lago a sua frente, ela sabia que levaria um tempo até ele chegar com seus óculos embaçados e dentes amarelos. Mas respirava calma, como que ensaiando para uma peça de uma produção magnífica. 

Bicou um gole de seu chá - "Doce demais" - pensou. E era assim que preferia, pois levaria tempo diluindo o chá em sua saliva e deliciando-se com o som dos grilos e sapos à sua volta. 

Sua amiga levaria tempo para chegar, ela recusava-se a parar de trabalhar. Era aposentada há 20 anos, mas dizia que os jovens a mantinham jovem, com um sorriso que ninguém podia negar, era a juventude pura. Uma senhora leve, de mente aberta e religiões diversas. Ela gostava de dizer que não acreditava em nada, só naquilo que contavam para ela. Era o jeito dela de acolher todos os que buscavam conforto em sua presença. 

Josefa era seu nome, mas todos a chamavam de Jose, seu nick no Xbox que ela tanto se orgulhava. No Natal passado sua filha viera com sua esposa e filhos passar a data com ela, e Augusto, seu neto, trouxe com ele seu videogame. Os dias correram tão bem, entre passeios na praça da cidade e jantares fora em família, que o garoto acabou esquecendo do aparelho. No fim, o rapaz já estava mesmo para ganhar um console novo, visto que seu aniversário seria dias depois do Natal e então com uma mensagem em vídeo "confessou" que havia deixado o Xbox para ela, pois acreditava que ela iria adorar. E de fato, ele estava certo. 

Jose havia perdido seu marido há trinta anos e desde então tomou como propósito de sua vida, direcionar todo o amor que tinha por seu amado, para todas as pessoas que ela conhecia. 

"Eu consigo ver amiga, no sorriso de cada pessoa que faço alegre com meus conselhos ou abraços, os olhos de Tião". 

Sua religião tornou-se estar ali por todos os que precisassem e sua amiga precisava com demasiada frequência. 

Lá pelas cinco e vinte da manhã, quando o céu já se misturava com tons mais claros, pode ver a distância uma bicicleta que vinha com velocidade assustadora. "Francisco está com pressa e chegou cedo hoje!" - murmurou para si mesmo. Mas não era seu carteiro, era Lucas, o menino atleta que se mudara com sua família há poucos anos. Ela admirava a dedicação do garoto, que se punha somente de shorts, camiseta e um tênis barato, todas as manhãs para correr três voltas em volta do enorme lago. 

"Eu quero participar de um triatlo, dona! Tenho que treinar bastante para me deixar orgulhoso!" - a frase de vez em quando voltava para sua mente, "para me deixar orgulhoso", o que ele queria dizer com isso? Seria orgulho para os seus pais verem ele feliz e realizado? Orgulho de si mesmo? Como? 

Abandonou o pensamento quando viu no chão ao seu lado, quase que imperceptível, atrás de um vaso de flores, o manuscrito em que estava trabalhando. Com a memória que tinha nos últimos dias, acabou esquecendo que deixara as páginas do lado de fora na noite em que ficou na varanda admirando a lua cheia. Se viu pegando as páginas, porém não mexeu um músculo, estava tão confortável com o gato ronronando aquecido em seus pés que decidiu divagar sobre o manuscrito de acordo com o que lembrava. 

Escrevia uma história sobre uma criança que morava na beira de um rio. Literalmente na beira de um rio, dez passos a frente da porta de sua casa e seus pés já estavam molhados. A criança que morria de medo de qualquer bicho e da própria natureza, assustando-se com os galhos das árvores que arranhavam as janelas de seu quarto durante a noite, cresceu para ser uma das maiores biólogas do universo. Catalogando novas espécies de animais e descobrindo medicamentos a partir de ervas que ninguém havia considerado. A graça do conto para ela seria o fim, onde a pessoa já adulta, morreria afogada, em um pequeno lago ao lado da casa de férias onde ela passaria seus dias. 

Não tinha pensamentos mórbidos sobre a vida, mas divagava frequentemente sobre as possibilidades de existência e sobre a aleatoriedade das coisas, que no final, faziam total sentido se observadas de perto. 

Sentiu o ar um pouco mais difícil e sabia que a memória do que quer que fosse estava cada vez mais perto. Não sabia ao certo o que causava suas crises, mas sempre descobria quando já não conseguia se mover. Tomou o último gole de chá e este manteve na boca por alguns minutos, como que para treinar sua respiração pelo nariz, queria sentir o ar gelado da manhã e acalmar sua alma o máximo possível. 

Foi quando um pássaro pousou na cerca a frente de sua casa, fitando-a diretamente nos olhos, observando cada detalhe de sua velhice que ela sentiu. Como um vendaval que leva consigo tudo o que encontra na frente e não está exatamente fixo em um lugar, sentiu todos os fragmentos de sua mente sendo jogados de um lado para o outro. Sabia que naquele momento não havia outra coisa a ser feita para que não surtasse de vez. 

Às seis e dez da manhã já havia traços de laranja no céu e toda a adrenalina em seu corpo fez com que ela não sentisse mais nem um pingo de frio. Entrou em sua casa e pôs se a lavar a louça do jantar da noite passada. Dava atenção máxima a cada detalhe dos desenhos em sua louça e tomava todo o cuidado do mundo para não usar sabão demais. Para ela, aquilo era inconscientemente uma forma de demonstrar controle sobre alguma coisa. 

Encontrou sua mente em um turbilhão de pensamentos e então decidiu buscar seus fones de ouvido para colocar uma palestra sobre as leis do universo. Aquilo em conjunto com a higienização de sua cozinha, acalmaria sua mente com total certeza. Apesar de ouvir a palestra em um volume consideravelmente alto, podia ouvir os sons do ambiente a sua volta. Os carros que passavam devagar em frente a sua casa. Os pássaros que sobrevoavam o lago, talvez em busca de seu café da manhã. Os pais entregando suas crianças as vans que os levavam até a escola. O vizinho que encontrava algo para consertar todo santo dia exatamente às oito da manhã e que de alguma forma era sempre através do uso de um martelo nada silencioso. 

Quando percebeu já eram sete da manhã e ela havia estado em todos os cômodos da casa, tirando um papel do chão que ela ignorara há alguns dias, estendendo toalhas de banho no varal no quintal atrás de sua casa, passando uma vassoura no corredor de madeira que era a única parte do piso de sua casa que não era de concreto e acendendo um incenso de canela para emanar uma energia tranquila e agradável naquilo que agora era o templo de sua mente. 

Era hora do carteiro e então, após ter organizado toda a sua mente, sentou-se na varanda novamente, agora sem o xale que usara nas pernas mais cedo, somente batendo os pés incessantemente, esperando o carteiro como alguém espera um bombeiro dentro de uma casa em chamas. 

Conferiu seu relógio de pulso, sete horas em ponto e nada de Francisco. Onde havia de estar este homem? O que poderia estar fazendo de tão importante que não poderia trazer para ela sua nova encomenda de livros? Percebeu-se então egoísta. "Pode ser que tenha filhos e que algum adoecera", "Ou talvez tenha se acidentado, essas estradas talvez sejam perigosas, não tenho como saber", "Ou quem sabe pode ter morrido, afinal na nossa idade, tudo é possível"... Estes e um bilhão de outros pensamentos passaram por sua cabeça até que ela decidiu levantar e voltar as tarefas de casa. 

Honestamente já não havia mais o que ser feito, a casa estava um brinco de limpeza e ainda com um cheirinho delicioso de canela que agora estava suavizado. Decidiu então que meditaria, em seu sofá, de frente para a grande janela que retratava a casa na árvore que tinha em seu jardim. Enrolou seu corpo em uma manta que deixava na cômoda ao lado do sofá e sentou-se com as mãos nos joelhos. Respirou e a primeira coisa que pode ouvir foi seu relógio na parede da sala, em um instante de ansiedade abriu os olhos e notou as horas, sete em ponto. 

Meditando de olhos fechados, chorou. Lembrou-se de sua mãe, uma mulher simples em sua definição mais precisa. Sua mãe era uma senhora de um metro e cinquenta e dois de altura, adorava costura, assistia todas as novelas que passavam na televisão aberta e adorava livros de romance antigos, daqueles em versão de bolso que todos ignoram nas bibliotecas. Sua mãe adorava fazer bolos, ela sempre contava uma história sobre quando o pai dela a ensinou a fazer bolos de fubá com goiabada. Para ela, Julieta era seu nome, a possibilidade de criar algo tão delicioso era simplesmente esplêndido. É claro que após a morte de seu pai, Julieta também fazia bolos para lembrar-se e sentir-se mais próxima da única paixão que teve em sua vida, mas até o último bolo que fez, seu maior sentimento era o de satisfação própria. 

Assim como admirava Lucas, admirava sua mãe, por ter sido sempre tão coesa, tão focada em ser sua melhor versão em toda a simplicidade que era. 

Inspirou profundamente uma vez e expirou, inspirou mais uma vez e desta o ar preenchera todo seu pulmão, na terceira vez já não estava mais em sua sala. Os sons que ouvia estavam abafados e ela sentia dentro de uma cápsula isolada. Sentia seu corpo leve e agora o mundo era como uma música. No conforto de sua casa, na deliciosidade de sua energia sentiu algo mudar, a falta, algo estava faltando. 

Sua mão involuntariamente arrastou-se pelo assento ao seu lado no sofá, ninguém ali. Do que era exatamente que ela sentia falta? No fundo, ela sabia, mas sua mente a protegia, fingindo esquecimento deste alguém que uma vez ocupou o grande vazio que agora existia em seu peito. 

Quando ouviu do lado de fora o som de uma bicicleta, soube... Só pode ser Francisco. Como esperado, em sua pontualidade inata chegara às sete em ponto. Ao abrir a porta, porém, deparou-se com um senhor um pouco mais jovem que ela. Onde estava Francisco? 

- Francisco? Onde está Francisco? - perguntou ela com um desespero contido. 

- Sim, me chamo Francisco, você devia conhecer o último carteiro, né? Eu sinto muito se era próxima dele, não sei como... Não sei se devo dizer. Ahn, o senhor que trabalhava antes de mim, bem, ele morreu em um acidente não muito longe daqui. Um acidente feio inclusive, vários carros acabaram batendo, mas vendo pelo lado bom, os médicos disseram que Francisco morrera de parada cardíaca, todos ficaram preocupados ao ver os pedaços de seu corpo na estrada imaginando quanta dor ele devia ter sentido antes de morrer, mas por sorte ele morreu antes de morrer. 

O senhor a sua frente dava risada da situação que só podia ser descrita como excruciante. A dor que ela sentia em seu peito podia muito bem a tê-la levado por parada cardíaca também, mas ao invés de engajar com aquela cena grotesca de desrespeito, ela simplesmente recebeu suas encomendas e voltou para dentro de casa. 

Mesmo sendo duas da tarde ela sentia como se sua casa estivesse em uma escuridão total. A perda de Francisco trouxe para ela a lembrança do que tanto ela sentia falta. Agora que ela tinha certeza de que o carteiro não voltaria e que não seria mais um jogo seu às quatro da manhã "se ele virá ou não", entendeu. 

Há exatos quatro anos se apaixonara. Nossa personagem há muito havia abandonado suas esperanças no amor. Percebeu em si um padrão de amor incondicional que não era nem um pouco saudável. Neste último amor ela dedicara toda sua arte e vida para o mantimento deste sentimento. Diferente de sua mãe, ela era complexa e multifacetada. Adorava desafios e conversas intrigantes sobre o simples. Ela discorria por horas sobre como amava seu amante e como a existência fazia sim, sentido! Como o sol era uma analogia e como as flores eram a ilustração de um sentimento milenar. 

Acariciava o rosto de seu amado como quem pintava um quadro com pétalas. Deliciava-se com os momentos em que podia observar cada detalhe da pele dele de perto. Criava momentos, com velas e incensos, para ambientar o lugar onde assistiriam um filme que ela nem queria assistir, mas que para ele era a maior criação cinematográfica de todos os tempos. 

Ela adorava acordar cedo para recebê-lo em casa. Passava as madrugadas escrevendo, mas acordava sem despertador, duas horas depois, ainda uma hora mais cedo do que ele chegaria, para preparar um bolo, como os que sua mãe fazia e quando ele chegava, entregava seu coração no sorriso mais honesto que alguma vez já existiu. 

Dedicava-se a escrita como que para mostrar ao seu parceiro algum valor. As vezes sentia que devia isto a ele. Mesmo lhe oferecendo sua casa, as refeições deliciosas que só ela preparava e um gato todo cheio de personalidade e pelos macios, ainda sentia faltar algo. Cuidava de lavar-lhe as roupas e organizar sua bagunça, ele desabafava raramente com ela, mas ela observadora que sempre foi, sentia na energia dele que as coisas não andavam fáceis. 

Então ela movia montanhas, fazia de Deus e o mundo para proteger seu amor de todas as dores que ela já conhecia e podia suportar. 

No fim de tudo ela descobriu que ele não era quem dizia ser e que sempre foi um aproveitador de todo o amor que ela tinha para oferecer. Escreveu uma vez sobre um personagem que se deleitava na pobreza. Ele havia descoberto que muitas pessoas ajudam aqueles que necessitavam, então, mesmo sendo totalmente capaz de mudar de vida, aceitou aquela. Vivia tomando tudo o que todos podiam dar e um pouquinho mais quando conseguia. 

Com ela foi exatamente assim, ela precisava amar, porque acreditava no amor como muitas pessoas acreditavam na caridade. Seu coração quando estava tranquilo, pulsava de amor incondicional que queria ser entregue para alguém, para florir e tomar forma no mundo real, mas a escritora percebeu que só encontrava homens tais quais no seu conto, daqueles que só aproveitavam de seu amor até secar. 

E quando seca, ficava a beira da morte. Porque sentia falta de fluir. Transbordar seu amor para alguém além dela. 

Quando finalmente processou a informação de que Francisco estava morto, seu carteiro amigo e confidente, desmoronou. A morte do amigo em si já era o suficiente para destruir todo seu ser solitário, mas a cereja do bolo foi perceber que ainda sentia falta de Edison, seu antigo amor. Ela estava agora como um jarro no chão, esquecido na chuva, transbordando de uma torrente infindável de água. Água esta que não iria para lugar nenhum especificamente. E isso a destruía. Seu amor não poderia ser gasto. Acreditava ser o propósito de sua vida, amar. 

Às sete da manhã sua amiga chegara e ela estava como estava às duas da tarde do mesmo dia, posta ao chão, em prantos, mas agora com seu gato à sua volta. Sua amiga chegou silenciosa, trouxe-lhe uma pelúcia cor de rosa que ganhara em uma máquina de shopping e os ingredientes para preparar uma tábua de frios; com salame, presunto e queijo. 

Mas sua amiga, com todo o amor que aprendera a direcionar de seu falecido marido para o mundo, sabia que não era hora de dizer nada. Ainda mais para a escritora, que sempre encontrava seu caminho, sozinha. Despiu-se de seu casaco molhado, pois havia chovido no início da noite e sentou-se ao lado de sua companheira. Envolveu-a em um abraço caloroso e ali ficou. 

Com os olhos inundados de lágrimas, buscou a sabedoria de sua amiga: 

- Por que Jose, por que sempre que estou me sentindo bem e completa comigo mesma tenho vontade de entregar tudo o que sou para outro alguém? 

Sua amiga continuou o abraço e se manteve em silêncio. 

- Como pode que me entrego até os ossos e meu amor nunca é retribuído? Por que não posso encontrar alguém que vá simplesmente me amar de volta? 

- Você quer mesmo saber? Ou está dialogando sozinha? 

- Eu só posso querer saber nesse ponto... - e soluçou de uma nova torrente de lágrimas. 

- Você se ama demais Analice e você tem ânsia por se amar cada vez mais. Somos excelentes amigas por esse motivo. Porque eu encontrei o amor pelos outros e você encontrou o amor por si mesma. Você se encontrou e eu a invejo todos os dias. 

As lágrimas tomaram uma pausa e a senhora respirava com leveza, recuperando seu fôlego depois de tanto choro. Ela agora se alinhara e fitava o rosto da amiga, estudando-a e tentando entender profundamente o que ela ouvia. 

- Você é diferente de mim, ao se sentir bem você faz bem aos outros à sua volta. Quando está calma e feliz você é simplesmente admirável e quando não está é claramente perceptível, visto que você desaparece. 

- Eu não desapar... 

- Deixe me concluir - Jose a interrompeu para não perder sua linha de pensamento - Quando eu perdi meu Tião foi imediato após o luto começar a ver na beleza do mundo o reflexo do que eu sentia por ele. E eu entendi naquele momento que não era na verdade sobre ele, era sobre o que eu sentia quando assistia ele existindo. E aquilo não morreu, nem vai morrer nunca. Você tem um jeito de usar o amor contra você. 

- Mas eu sinto muita falta dele, quando digo seu nome, Edison, meu corpo inteiro se desmancha por dentro e só o que eu queria era saber onde ele está. 

- Você ainda não entendeu... 

- Ilumine me então! - neste ponto as duas já levantavam e Analice vasculhava as sacolas para preparar-lhes a tábua. 

- Pegue para nós nosso vinho favorito, vamos sentar-nos e conversar em frente a lareira. 

As duas conversaram até às duas da manhã, Analice voltou a chorar algumas vezes, mas no final sentia se bem. Estava sorrindo e falando mais do que era possível na fração de tempo que as duas tinham juntas. Jose conhecia bem a amiga, mas conhecia ainda mais quem ela mesmo era. Em alguns momentos até perderam a paciência uma com a outra, mas o sabor daquele sentimento, quando se está com alguém que se ama de verdade, era até melhor que o salame que as duas saboreavam. 

Depois de muita conversa e aprendizado, dormiram. A confirmação de que aprendera tudo o que havia para aprender naquela noite, veio às sete da manhã da sexta-feira seguinte, quando Francisco, agora não o seu Francisco, chegou para lhe entregar seus livros. 

- Bom dia senhora, como está você nesta linda manhã? Eu trouxe seus livros e hoje estão pesados, o que tanto a senhora lê? Consegue ler tudo o que trago há tempo antes dos novos chegarem? Você deve ser muito inteligente, minha mãe não lia muito e era, não consigo imaginar você... 

Este Francisco tinha a energia de quem sempre está atrás de aprovação. Compensava sua timidez e falta de tato com as pessoas através de sua fala incessante. O rapaz, antes de entregar os livros de Analice, ainda fez um milhão de questionamentos. Chegou a perguntar se ela gostaria que ele levasse algo mais da cidade, pois sempre passava por uma cafeteria no caminho e talvez tivesse visto uma loja de produtos naturais. 

Normalmente Analice ficaria incomodada com tanta falação, mas ali, diante de quem agora seria sua companhia três vezes na semana, respirou e analisou profundamente os olhos do homem enquanto ele falava sem pausas. Por um instante pode jurar ver nos olhos de Francisco, os olhos de seu Francisco, como que saudando ela de outro mundo. 

Ela finalmente entendera uma parte do que Jose vinha lhe falando há tanto tempo. Cada pessoa que encontrava, conhecia, compartilhava a vida ou até que a tentava destruir, a transformava e a fazia enxergar o mundo de uma perspectiva mais específica. O amor que até agora usava contra si mesma, acreditando que só poderia fluí-lo para alguém específico, jorrava dela para o carteiro e ela se sentia bem. Era simples e fácil amar. 

Reconheceu em novo Francisco o antigo, nele também Josefa e Edison. E simplesmente... Amou.

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