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Era você ali


A chuva fina caía pausadamente, como se cada gota estivesse aproveitando o máximo a viagem das nuvens até o chão. O sol estava ardente e o clima abafado, mesmo com tantas árvores em volta, aquele era um dia atípico. Um dia de transição, de imortalidade.

Marilene tinha por rotina caminhar todas as manhãs logo que o sol nascesse antes de ele se tornar a imensa e insuportável esfera de fogo que sempre foi. Ela tinha por vocação a pintura, pintava quadros absurdos e coloridos sobre mundos desconhecidos e almas perdidas em universos aquarelas.

Nesta manhã, decidiu caminhar, não por hábito, mas por ansiedade. Na noite anterior não conseguira dormir com uma imagem que se instalou em sua mente e a importunou até que se materializasse em quadro. A arte que a inspirou era o corpo de uma senhora vestida em tecidos finos e coloridos, desfalecida em um campo verde segurando uma xícara de porcelana envolta em tons de azul que a lembrava do mar, como fosse uma onda que cercou a mulher completamente e no fundo das águas, quase que imperceptível, escapava uma criança.

Marilene adorava e admirava todos os tipos de arte, mas tinha um carinho especial por cartas de tarô. Ela não conseguia deixar de associar seu mais novo quadro com a carta da Temperança. Respirava o ar quente da manhã e sentia uma energia transpor seu corpo enquanto imaginava que criara uma arte passível de imortalização. Ela visualizava o quadro em sua mente e imaginava também que poderia ser uma representação da Roda da Fortuna ou até mesmo do Pajem de Copas.

Como havia tomado um café da manhã muito bem reforçado, decidiu que caminharia mais longe do que de costume, sentia que o mundo a chamava para comprovar de alguma forma que tudo o que ela sentia existia de fato. Seus quadros, por mais exuberantes que fossem, em sua visão traduziam-se em sentimentos simples e acontecimentos cotidianos.

Passou por uma estrada que era cercada de árvores e ali sentiu um frescor renovador. As árvores por si só já eram enormes e ainda se estendiam acima do nível da rua, em montes de terra que afunilavam a rua até uma ponte de madeira. Ao chegar à ponte, observou o rio e pode ver peixes nadando correnteza acima, pulando jovens e astutos como que na tentativa de experimentar o voo em desafio a Deus.

“Terei eu a coragem de desafiar Deus de tal forma em minha vida, mesmo agora que me aproximo tanto do fim?” Deixando a ponte entrou novamente em uma estrada cercada por árvores, mas desta vez todas estavam rodeadas de flores das mais diversas cores. Em sua mente, um milhão de quadros começavam a surgir, com arbustos adornados de borboletas de fogo e árvores que tinham pequenas bocas verdes ao invés de folhas.

O vento uivou e Mari pôs-se estática, atenta e respeitosa. “Está tentando me dizer alguma coisa”. Respirou como que meditando por longos três minutos, sentiu um arrepio na pele que trouxe para aquele momento exato e em seguida podia quase que ver uma linha amarela formada pelo vento que descia para a estrada e seguia em frente. Confiando em sua intuição, caminhou.

Podia ouvir pássaros cantando para todos os lados, mas entre eles havia um canto muito distinto. O de gaivotas. Ali era o campo e Lene sabia muito bem que a praia estava a meses de distância. A última vez que ouvirá falar sobre o mar tinha sido em uma conversa que tivera com seu irmão Ernani quando ele retornou de uma longa viagem a negócios. Ernani era um homem paciente e calculista. Suas atitudes eram sempre medidas e cautelosas, mas também era doce e caloroso. Mari associava sua calmaria e cautela a tragédia que se deu em sua família anos atrás.

Ernani e Marilene perderam seus pais em sua infância, para sorte de Mari ou não, no dia em que o acidente aconteceu, ela estava em casa com sua vó. Era um domingo e como de costume todos iam a igreja de carroça. Naquele em particular foram mais cedo, pois acontecia um evento organizado por uma senhora que adorava pescar. No caminho para a igreja havia um pequeno penhasco onde seu pai sempre descia para segurar o cavalo e guiá-lo lentamente. Mas naquele dia, por pressa e confiança de que o animal havia aprendido a travessia, tentou passar direto. A carroça virou, levando a família até a base do precipício. Como Ernani sobrevivera ainda permanece um mistério, mas todos admiravam a força do menino que foi encontrado abraçando o corpo desmantelado de seus pais.

Enfim, o mar, ela jurava que podia sentir o cheiro de água salgada e até o que Ernani a contava aquele era certamente o cheiro da praia. Seguindo sua trilha pode enxergar algo reluzente a uma curta distância, resolveu que checaria do que se tratava aquele brilho atrás das árvores. A passos lentos e curtos, foi aos poucos distinguindo no horizonte uma casa com roupas coloridas estendidas ao vento. Na varanda da casa uma rede cor bege balançava com o vento e ao lado da porta um banquinho cor de rosa. Aquilo para ela era completamente peculiar e maravilhoso, lhe trazia inspiração para novos quadros sobre uma bruxa gentil que morava em uma casa adornada com itens distintos.

No quintal, à frente da casa, podia ver um vestido colorido e de tecidos finos completamente encharcado, jogado ao chão, ao lado de um galão de água. Ao aproximar-se notou em cima do vestido uma xícara de porcelana. Onde foi que ela tinha visto aquilo antes? A configuração disposta a sua frente a tirara completamente de sua realidade e por um instante ela podia jurar que não lembrava nem o seu próprio nome. Curiosa e exploradora olhou dentro do galão e como pode imaginar, estava vazio. Mas BINGO, era dali o cheiro da praia, ela não estava completamente fora de si, o mar estava no campo.

Por um instante imaginou como seria engraçado se seu irmão tivesse trazido aquele galão de água para aquele lugar mágico. Ernani tornar-se-ia um ser encantado em sua mente caso tivesse envolvimento com algo do que se passava à sua frente. Mas aquilo já era sua imaginação pensou ela, estou fantasiando demais, pintarei quadros eternamente se continuar assim. Resolveu que conheceria quem quer que morasse naquela casa e bateu palmas esperando encontrar uma jovem mulher ou até mesmo um homem artista assim como ela que resolvera viver no campo sozinho. A demora para a resposta a deixou um pouco nervosa, estava ansiosa para descobrir do que se tratava o vestido no quintal e sobre a água do mar. Voltou a bater palmas e desta vez chamou aproximando-se cada vez mais da porta da casa.

"Olá", chamou uma voz infantil vindo de dentro da casa - Só um instante, te atendo em um segundo. Uma menina, era a voz de uma menina. Mas a firmeza como falava e a confiança na voz deixaram Marilene um pouco desconcertada, “Deve ser filha única” - pensou.

Poucos minutos depois saiu de dentro da casa uma jovem garota com os cabelos molhados sendo secados por uma toalha bege, seus olhos tão escuros quanto a noite, mas com um brilho estonteante. Estava vestida em um vestido muito semelhante ao que deitava no quintal naquele instante e os pés descalços sugeriam que ela acabara de sair de um banho.

“Olá, pequena menina, estou caminhando pela cidade e não pude deixar de notar quão linda é sua casa. Me perdoe a invasão, as cores aqui e o cheiro do mar me atraíram e não pude me conter, mas vir conhecer quem quer que viva por aqui."

O sorriso que a menina lhe deu após sua fala a trouxe de volta para quem ela era e de repente ela pode ver seu quadro. Sentiu um arrepio e uma excitação, era aqui, esse era o momento do quadro. Como pode que não notara antes, não sabia mais o que estava sentindo. Se era medo ou excitação, euforia ou pânico.

Ainda com o sorriso nos lábios e com uma paixão quase que constrangedora nos olhos a pequena garota respondeu: "Olá Marilene, me chamo Eva!"

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