O caçador nem sempre foi o que é agora. Há algum tempo, quando
ainda era criança, não sabia nem ao menos andar na floresta sem se perder nos
primeiros minutos. Seus pais, que moravam em uma cabana ao lado da grande
floresta, sempre ouviam seus gritos de socorro e saíam logo atrás para mostrar
ao pequeno garoto que ele estava a um arbusto de distância de casa.
Quando adolescente, tinha medo e ainda se perdia com igual
facilidade, mas agora confiava um pouco mais em si mesmo e desenvolveu uma
teimosia.
-Eu posso muito bem me encontrar e achar o caminho de casa - dizia
ele engolindo o choro e secando as lágrimas.
Com o passar do tempo essa teimosia e os litros de choro engolidos
o tornaram uma pessoa solitária. Suas opções sempre limitadas a seguir um
caminho sozinho e descobrir tudo o que pudesse para não depender de ninguém.
Quando em casa, no entanto, seus pais o ajudavam com tudo o que
precisava. Suas roupas, sempre limpas quando saía para suas andanças; e a caça,
seu pai conseguia sozinho.
A última vez que levou o menino para a floresta, longe o bastante
para encontrar animais, o pequeno se perdeu e foram precisos dois dias e duas
noites para encontrá-lo.
Santa a teimosia ou não, ele caminhou sozinho procurando por
frutas ou algo para comer, pois já estava faminto e seu caminho o levou para o
lado oposto de sua casa. Pois bem, a partir daí seu pai prometeu não o levar
para as caças, sua mãe ficou descontente com a ideia, ao passo que o pai a
convenceu dizendo que o menino tinha jeito para artista.
Quando atingiu a idade adulta já caminhava sozinho e tranquilo
pela floresta, não porque havia aprendido a lidar com as situações adversas da
mata, mas porque aprendera cada pedra e cada arbusto que havia no lugar. Cada
árvore já tinha uma marcação sua e o som dos riachos era como o riso de amigos
que ele encontrava diariamente.
Sempre sozinho, sempre aprendendo a lidar com a floresta de sua
maneira e descobrindo força toda a vez em que se perdia em um lugar conhecido.
Agora crescido tinha liberdade para andar à noite. Encontrava
perigos estranhos, coisas que seus pais nunca o ensinaram, mas que lhe traziam
emoção e algumas vezes, prazer. Nunca conversou sobre o assunto em casa e para
ele parecia que vivia em dois mundos paralelos. O dele e o dos outros. Estes
mundos quase nunca se colidiam e, quando acontecia, trazia um grande
desconforto para todas as partes.
Seu silêncio em casa foi aumentando e, para si mesmo, diminuindo.
Conversava o tempo todo em um idioma xamã que havia aprendido na floresta. Eram
diálogos cansativos e extensos sobre tudo o que via na mata, sobre maneiras de
lidar com as situações que enfrentava e, principalmente, sobre quem era ele no
meio daquilo tudo.
Quando completou 22 anos, seus pais decidiram que iriam embora.
Havia uma vila que crescia próxima ao lugar onde eles moravam e os pais estavam
cansados da vida isolada. Descobriram que a arte do filho não era a mesma
deles, como quem descobre que está frio ao tirar uma das blusas que está
vestindo.
O rapaz, nos primeiros dias, não sentiu muita diferença. Cozinhava
pela manhã e a comida durava o dia todo. Carregava consigo os mesmos potes com
alimentos para cima e para baixo, a mesma garrafa com água e suas roupas se
mantinham limpas pois pegava um par diferente todo dia.
O caçador surgiu quando o primeiro pote de alimento quebrou. Onde
se consegue potes de alimentos? Aquilo era fora da floresta que ele conhecia
tão bem? Porque as roupas não estão limpas e guardadas no guarda-roupas? Onde
está a caça que havia em abundância na geladeira? Decidiu procurar as respostas
na floresta.
Passaram-se anos até que ele descobrisse onde conseguir potes
novos. As roupas ele entendeu rápido, mas seu processo era diferente. Levava
todas ao rio e as lavava por lá, enquanto discursava para si mesmo manifestos
de conquista e solidão. Quanto à caça, talvez suas orações servissem para
alguma coisa. Quase que todas as manhãs um animal de pequeno porte esperava na
porta da casa ou muito próximo dali. Não sabia caçar, mas sua teimosia o
ensinara.
Quando tudo estava certo e agora já era seu próprio caçador,
decidiu que estava pronto para mais. Talvez construir uma família, fazer o que
seu pai e mãe fizeram. Mas onde encontraria alguém que topasse ser pai também
num lugar tão remoto e vazio? Meditou. Após lavar todas as roupas no rio,
sentou-se em uma pedra quente que tomara sol a manhã inteira e encheu seus
pulmões.
-Estou pronto - repetia ele com o sopro que soltava da respiração.
No terceiro dia após a meditação, sentiu um impulso para caminhar
mais distante do que já havia caminhado. Atravessou lagos, admirou árvores que
nunca tinha visto e conheceu animais que nem ao menos tinha ouvido falar sobre.
O musgo nas pedras na beira dos rios o deixava feliz, observador ele adorava os
detalhes que a natureza possuía. As cores que variam nas folhas das árvores. Os
galhos e as flores espalhadas pelos caminhos, adornando tudo e transformando o
passeio em um momento mágico.
Foi então que ouviu.
Sentiu no mesmo instante um frio na espinha, sabia que não havia
tempo para correr; estava muito próximo.
O urso.
Quando se virou avistou o urso correndo em sua direção com uma
avidez estonteante, como se o rapaz fosse um prêmio inestimável.
No primeiro choque o urso enrolou seus braços no jovem homem e com
algo que pareceu um abraço o sufocou. O caçador, talvez por medo ou por
descontrole, passou a alucinar.
Enquanto o urso o girava, imaginava que aquilo era de fato um
abraço afetivo.
Quando o segurou pelos braços para batê-lo no chão, imaginou que
era criança novamente e que seu pai o girava alegremente num dia de sol.
Quando abocanhou seu peito, arrancando seu coração, teve certeza
de que se tratava de uma jura de amor;
-Está guardando meu amor para ele. - Pensou em seu delírio.
O urso não parecia estar com fome, pois não se alimentava de
nenhum pedaço do garoto, mas separava os membros do corpo como peças colocadas
em um quadro macabro.
Quem via de fora, a cena terrível, mesmo que não houvesse ninguém
ali para ver, enxergava um rapaz que tinha espasmos de dor e gritava com um som
jamais ouvido e que logo em seguida sorria com um olhar apaixonado e
esperançoso.
Era puro terror, mas o caçador era artista.
O urso por fim satisfeito separou todas as partes do corpo do
homem e as deixou montadas muito próximas como que tentando tirar dele a culpa
pelo que havia acontecido ali.
-Eu ajudei no fim. - Pensou o urso ao se afastar.
Passou se duas semanas em que o jovem ficara ali, absorto e
imóvel, acreditando que o urso voltaria para algum tipo de reconciliação,
afinal de contas, em sua ilusão o urso só havia demonstrado todo o amor que
tinha por ele. Não se movia por dor, cada brisa que passava por cima de seu
corpo destruído era como as correntes que caem das cachoeiras nas pedras em sua
base.
Não tinha esperança de voltar um dia a ser quem era antes, mas
acreditava que tudo aquilo era sonho e que talvez o urso fosse a resposta para
sua meditação.
-O tempo que ele apareceu foi muito certeiro, deve ser ele, deve
de ser, só pode que seja!
Alucinou por dias e percebeu que com ele ficara uma pequena
criatura, talvez do urso, agora dele.
-Vou cuidar de você! - prometeu mesmo paralisado pela dor
incessante.
Após um mês naquele mesmo lugar, entendeu o que seu pai viu nele.
O caçador era também feiticeiro e como que por milagre, mas por magia, seu
corpo começou a se restaurar. Lentamente, porém constante, a cura acontecia
todas as manhãs quando o sol nascia. Quando sentia qualquer alívio da dor podia
jurar que ouvia o urso por perto, mas ele nunca sabia se estava com medo ou
esperança.
Quando finalmente conseguiu levantar-se, caminhou para casa sem
perder um passo. O caminho agora já não era conhecido por teimosia, mas por
experiência. Os galhos, as flores, o musgo, tudo fazia sentido e ele só
caminhava lentamente com a pequena criatura que o acompanhava.
Chegou em casa, vestiu as roupas que agora estavam limpas,
alimentou-se da caça que ele mesmo conquistou e guardou o resto em potes novos
que ele mesmo conseguiu.
Ao deitar-se, meditou.
Sentiu seu corpo cada vez mais restaurado.
-Será que sou imortal ou só tenho resistência a ursos?
O caçador nem sempre foi o caçador. Às vezes o que torna um
simples teimoso em algo além do que era, é a fera que o tenta destruir.
Parabéns pela escolha de descrever um ser humano ,em eterno aprendizado, uma belíssima forma de compor desafios do nosso dia a dia em palavras! Amei .❤️
ResponderExcluirMuito obrigado pelo carinho ! <3
Excluir