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A eternidade da vida



 -Não demore Rosemeri! - o tom de voz de sua mãe era áspero, mas Rose sabia muito bem que se tratava da profecia.

Quando completou seis anos, apareceu na porta de sua casa uma senhora pedindo por água e abrigo do sol. Sua mãe, que passava os dias atarefada a atendeu com toda atenção e carinho. No começo ficou confusa sobre qual era o destino daquela mulher que a trouxe tão longe nos campos, mas com alguns instantes de conversa e se encantando cada vez mais, ela deixou a questão de lado.

-Podemos nos sentar na varanda da casa? - perguntou a senhora - Eu adorei seu quintal, suas flores tão bem cuidadas e as roupas no varal dariam um belo quadro de tão coloridas.

A menina ficava em volta da senhora sem se aproximar muito, tinha medo de estranhos. Era chucra e não tinha vergonha disso. Seus pais a ensinaram a desconfiar do mundo e seguir todas as regras à risca.

-Mas é claro que sim - respondeu sua mãe - Pegarei um chá gelado para tomarmos. Rosemeri, pegue um banco mais confortável para a senhora… desculpe, não me recordo seu nome.

-Isto é porque não tive a chance de me apresentar, sou Eva.

-Bom, filha, pegue o banco cor de rosa que tem no meu quarto para Eva,

A pequena menina estava deslumbrada com o encanto que sua mãe demonstrava pela forasteira. Parecia que havia uma ânsia por saber de histórias e da liberdade da mulher, que, para ela, era apenas uma estranha.

Ambas entraram na casa e retornaram ao mesmo tempo, sua mãe com a bandeja de chás gelados e ela com o banquinho. Quando chegaram à varanda, já não havia sinal da mulher, entretanto havia o canto de um pássaro que elas nunca ouviram antes. As roupas estavam penduradas de forma que as cores formavam uma pintura gradativa de cores quentes para as frias. O vento soprava do lado contrário que a segundos atrás. As flores haviam trocado de cor e uma chuva fina, quase que imperceptível, começou a cair, suficiente somente para formar um belo arco-íris que cortava a casa no meio.

Quando seu pai chegou à noite, nem ela, nem a mãe ousaram comentar sobre o encontro com a misteriosa senhora. Conversaram sobre o dia do homem que estava cansado de seu trabalho pesado e que reclamava, somente desejando deitar-se ao som de seu velho rádio para uma noite de sono.

-Adorei o que fizeram na árvore na frente da casa. Não sabia que vocês estavam aprendendo a entalhar objetos- disse seu pai enquanto levantava da mesa recolhendo os pratos.

Mãe e filha se encararam por alguns segundos e logo direcionaram um doce sorriso para disfarçar a confusão.

Sua mãe passou a sonhar todas as noites que sua filha não morreria nunca. Sonhava com o mar e com o canto de pássaros, os mesmos que cantavam no dia do inusitado encontro. Ninguém de sua família conhecia o mar e nenhum deles sonhava em um dia conhecer, visto que moravam em um campo tão distante que tudo o que precisavam, eles mesmos produziam. Seu pai trabalhava a quilômetros de casa e por muitas vezes passava semanas sem voltar, para “economizar o tempo e agilizar o dinheiro” como ele sempre dizia com um sorriso cansado.

Numa dessas semanas em que passaram a sós, percebeu que sua mãe estava obcecada olhando para a estrada.

-Deve estar esperando a senhora - pensava ela.

Em uma noite, em que não conseguia dormir, ouviu sua mãe entrar no quarto quietinha e sentar-se ao seu lado na cama.

-Filha? - sussurrou - Está acordada menina?

Ela não respondeu. Estava assustada e curiosa, sua mãe nunca ficara acordada até tão tarde da noite, muito menos entrando em seu quarto.

-Você tem um dom minha filha - prosseguiu a mãe - Você não morrerá nunca. Você verá o mar. Quando te dei seu nome foi porque me contaram que ele significava liberdade, compreensão e amor. Eu entendo agora - Neste instante a jovem mulher começava a chorar baixinho - Eu entendo porquê você é tão inteligente e o porquê é tão especial.

Na manhã seguinte, tomaram café como se nada houvesse acontecido e a menina desconfiava que talvez tivesse sonhado. Descobriu na adolescência que as visitas noturnas eram de fato sonhos e que na verdade a mãe saía durante a noite para pescar e muitas vezes, acabava dormindo por lá. Nas visitas, ou nos sonhos, a mulher a ensinava um feitiço de imortalidade que levava ingredientes muito simples. Todos eles facilmente encontrados na fazenda, com exceção de um. A água do mar. Eva. Em algum canto de sua alma a menina sabia que encontraria o último ingrediente no momento certo.

Quando adulta, tornou-se professora. Tinha tanto amor pelo que fazia que levava bolos quase todos os dias para as crianças. Bordava vestidos de presente no aniversário, costurava brinquedos e entalhava animais em madeira para os pequenos. Muitos admiravam sua dedicação e a recompensavam com presentes que ela nunca imaginava poder receber.

Em nenhum momento sua vontade era se mostrar como melhor, ou até impressionar alguém. A, agora mulher, ocupava seu tempo o máximo que podia para que o mesmo lhe fosse útil. Ela sabia em seu âmago que viveria para sempre, mas até concluir o feitiço, viveria como uma humana qualquer, desempenhando sua função e praticando o que amava.

O tempo passava e ela se via cada vez mais atarefada. Se envolveu com projetos do lugar onde morava, dedicou-se à igreja, mesmo que não tivesse religião, para ajudar aqueles que precisavam. Lia mais livros do que era possível se conseguir em uma cidade tão pequena. Cuidava dos animais que criava, pintava quadros, arriscava tocar violão e nos fins de semana, convidava amigos para cozinhar e se divertir em volta da fogueira.

Numa dessas reuniões, um amigo muito próximo, que sempre a tratou com todo o cortejo do mundo confidenciou a ela que estava de partida. Voltaria dali trinta anos, pois partia para cuidar do negócio da família, mas que não podia ir embora sem antes a dizer;

-Eu amo você, sempre amei, mas nunca entendi o sentimento. Eu nunca me senti suficiente para mim e sempre imaginei que você merecia alguém completo. Nunca lhe contei antes porque em meus devaneios temia te machucar por não me entender completamente. Estou indo embora agora e volto porque te amo, volto com toda a certeza. Me peça o que quiser que lhe trago, estou indo morar na praia.

Quinze anos se passaram e ela continuava dedicada à vida de servidão. Para ela e para os demais. Muitas pessoas que a viam envolvida em tantos assuntos imaginavam que ela não tinha tempo para si. E ela tinha. Chegava em casa para uma cozinha construída detalhadamente ao seu gosto. Na varanda da casa, tinha a rede que imitava a da casa de sua mãe e deixava sempre ao lado da porta um banquinho cor de rosa, só por capricho de um dia receber uma visita inesperada. Seu banheiro era do tamanho de um quarto, sempre com velas, incensos e sabonetes que ela ganhava de amigos e que tinham aromas deliciosos e calmantes. Seu quarto era como um templo, uma grande cama com colchão de penas, onde ela afundava todas as noites e sonhava com o mar.

Sua casa era como seu lugar secreto, onde todos os cômodos a inspiravam a viver. E ela sabia que viveria muito.

No dia em que seus pais morreram ela chorou copiosamente. Vestiu-se com roupas azuis por seis meses seguidos e dedicou-se à pescaria como nunca para que pudesse passar mais tempo sozinha, com seus pensamentos e suas promessas. Viajou pelas cidades vizinhas e ficou impressionada com a quantidade de pessoas que sabiam seu nome. Eram lugares que ela nunca havia visitado antes, mas as pessoas a acolhiam como alguém que aguardavam a muito tempo. Ela lhes contava histórias, mas a maior parte do tempo ouvia. Sempre beliscando algum doce que cozinhara, sempre bebericando alguma bebida que ensinou os segredos da produção.

Não guardava muito para si, não tinha segredos e amar ela amava, mas era diferente. Era um amor de quem ama a natureza, de quem entende o estado das coisas, um amor inconsciente e sem desejos, mas que mudava qualquer um apenas com um olhar.

Percebeu que passou quinze anos em andanças e em viagens descobrindo novos mundos e novas pessoas que já haviam descoberto sobre ela. Mas cansou-se e resolveu voltar.

Quando chegou a sua casa, havia em cima do banquinho cor de rosa um galão que aparentava ter no mínimo vinte litros. Curiosa e já de idade avançada, chamou pelo vizinho que a ajudou a descer o galão. Na tampa havia uma carta, com um poema sobre gaivotas e estrelas do mar, assinado com um misterioso E.

 

Sem saber se o E era de Ernani, o homem que a prometera amor e qualquer coisa que ela pudesse pedir, ou por Eva, a misteriosa mulher que aparecerá apenas uma vez em sua vida, mas que mudou tudo para sempre.

Resolveu que dormiria, se fosse Ernani, talvez ele voltasse pela manhã para encontrá-la. Teve uma noite calma e sem sonhos, pois estava cansada de tanto explorar o mundo e ajudar pessoas.

-Finalmente serei imortal - pensou enquanto suas pálpebras fechavam lentamente.

No dia seguinte esperou até depois do almoço por Ernani, tendo feito café pela manhã e carne de cordeiro para caso ele chegasse ao meio-dia. Ninguém. Somente ela.

Resolveu então abrir a caixa que guardava desde o sonho do feitiço. Juntou todos os itens que havia dentro dela no quintal e observou o galão.

-Serei imortal - refletiu.

Uma leve chuva, num dia de sol, como a do dia de Eva começou a cair sobre sua cabeça e lágrimas caiam de seus olhos, ela sabia que era hora.

Vestiu-se com um belo vestido que havia comprado especialmente para ocasião e tendo vivido oitenta belos anos, Rosemeri, caminhou até o rio.

Ficou lá por horas pensando nas noites em que sua mãe passava pescando. Será que ela vinha aqui para chorar? Será que ela sentia tanta falta de meu pai quanto eu sentia? Será que sem a promessa de viver para sempre a vida para ela era um fardo? Será que ela conhecia Eva? Quem era a mãe da minha mãe?

Levantou-se em prantos de percepção da vida e retornou até o quintal da casa onde estava o galão de água salgada.

Pegou a xícara que sua mãe havia usado para servir chá à Eva, ela a havia guardado com carinho, as três, e em um frenesi pela vida, ou pelo seu fim, banhou-se. A água estava fria, mas sua alma ardia de paixão a tudo à sua volta.

 Quando o galão já estava vazio, desfaleceu ao chão. Seu vestido colorido agora parecia um quadro aquarela contra o gramado verde. Havia canto de pássaros desconhecidos no ar e com a brisa do vento que trazia a fina chuva, seus olhos vagarosamente se fecharam pela última vez.

Comentários

  1. Um lindo conto,que nós leva a pensamentos leves e cheio de esperança por dias como quadros,,,, coloridos e tranquilos!!!! Em um tempo turbulento e sem cores !

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