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Descoberta



Caminhava sem pensar em direção à sua casa. Elizabeth era o nome do pássaro imaginário que seguia o homem onde quer que ele fosse. Luís Henrique Felgor é nossa chave, nosso interesse e mistério. Luís naquele dia resolvera caminhar em passos curtos, para conseguir contar os ladrilhos da estrada. A ideia não surgira hoje, o pássaro que sempre rodeava seus pensamentos contava os ladrilhos diária e incansavelmente, repetindo sem desistir:

-Sem os ladrilhos contar, como pode você caminhar? 271, 272, 273, é desrespeitoso Luís, esse chão tem história, é desrespeitoso Luís.

O homem de meia idade comemora seu aniversário em todo o décimo sétimo dia do terceiro mês do ano, mas este ainda demoraria a chegar. A informação nos ajuda aqui, pois foi no ladrilho 317 que seu pássaro, sem explicação morrera.

Observara a ave rodopiar em demasiada lentidão, até em seus pés chegar. Ficou ali, estática, já azul de tão fria, mesmo num dia quente. Como a cena já se punha como estranha, Henrique resolvera fingir receber uma notícia no celular. Sentou-se ao meio fio e chorou, chorou sem medo ou vergonha. Elizabeth morrera. Quando chegasse em casa, para as quatro paredes e a pilha de documentos ainda não processados, sentir-se-ia só sem dúvida. Onde encontrarei outro deste pássaro que voa sem asa, que fala sem piar e que mantem meus segredos e medos à salvo?

Olhou ao redor em revolta e medo do que viria, percebendo o ávido fluxo de carros na avenida e um ainda maior número de pessoas caminhando pelas ruas daquela cidade tão calma.

-Minha Elizabeth morreu- confidenciou ele para si mesmo em sussurro.

-Saúde! - disse uma passante completamente alheia ao que ocorria na mente do homem solitário.

Levantou-se em seu modo desengonçado e tentou encontrar na morte do pássaro algum sinal de vida, algo que o ajudasse a prosseguir.

-Percebo que as asas estão em cores diferentes do corpo, esse cinza... É do ladrilho, correto, Elizabeth nascera sem asas. Os olhos permaneceram fechados, estarei eu sendo negligente à alguma coisa em minha vida? Não, não deve ser isso. Para onde este bico aponta?

A última pergunta ecoou dentro do homem de maneira a entorpecê-lo. Não se moveu. Tinha medo de descobrir para onde apontava, mas ainda assim olhou, confiava, no pássaro, mesmo que morto.

-Não entendo ainda, uma padaria?

Luís Henrique Felgor estava prestes a descobrir o segredo do amor e sem conhecimento disso sentia-se travesso, estava enfim desviando do caminho de casa. Sua mãe, morta ao que podiam ser eras, sempre o aconselhou 'da escola para casa, de casa para a escola' e com o passar do tempo ele somente adaptou para 'do trabalho para casa, de casa para o trabalho'. 

Chacoalhando os ombros, tomando coragem num profundo inspirar, entrou.

Sentou-se à mesa e sentiu-se - como nunca houvera sentido - delicado. Tinha paciência para sentar-se à mesa, para ajustar a mochila na cadeira ao seu lado e, principalmente, para tocar o cardápio à sua frente. 

Leu as opções como quem lê, numa igreja lotada, um versículo da bíblia. Havia ternura, fé e consciência de que Elizabeth era senhora de tudo o que acontecia com ele.

Escolheu uma sobremesa, sem nem ao mesmo ter almoçado e esperou... Enquanto esperava, ainda com delicadeza Henrique observava a decoração do lugar. Seus olhos tinham medo de quebrar alguma coisa ali dentro, afinal o lugar era imaculado. Não havia poeira, não havia som diferente das vozes daqueles que apreciavam do céu com ele, sentiu-se seguro novamente, sem Elizabeth.

O prato chegara e ele ainda se sentia perplexo, a situação era inédita. O garçom percebendo a distração infantil e quase débil do cliente se afastara com agilidade, rir na cara dos clientes não era uma prática admirada por sua empresa. 

Felgor, sentindo-se pronto para o que quer que aquilo fosse, segurou o garfo com firmeza e ao tocar o doce com a ponta dele, desconfigurou-se. A consistência daquilo que agora o desafiava, era estarrecedora. De que material seria aquilo feito? Não conseguia imaginar que ali um dia houvera ovos, chocolate, leite ou qualquer outro ingrediente que ele tivesse conhecido.

Disfarçadamente olhou em volta as pessoas que ali estavam, todas agiam normalmente...

-O doce deve ser agradável - pensou ele - ninguém aqui parece estar comendo plástico.

A cena seguinte aconteceu em câmera lenta. Literalmente em câmera lenta.

Ao cortar o pedaço do doce, ajeitar no garfo e conduzir à sua boca, Luís cometeu o ato divino de constatar no ambiente, uma parede de vidro apontada para a avenida.

Ali ele descobriu algo que nunca sentira, o amor.

Ao tempo de o doce chegar a sua boca e todo o local imaculado se transportar para seu estômago, Henrique foi tomado pelo êxito. Dali em diante ele seria um homem novo. Lentamente, processando o tornado em que ele acabara de entrar, o homem percebeu nos passos dos caminhantes do outro lado do vidro, a ignorância. Quando saísse da loja com toda sua descoberta, ainda assim não poderia confidenciar nada à ninguém, pois ele durante todo esse tempo tinha sido o mais ignorante entre os mais ignorantes que já viveram. O segredo era seu, porque ele não saberia compartilhar.

A cada pedaço ingerido Luís se apaixonava perdidamente. Era um amor por algo que se come, um amor por alguém que se protege, um sentimento que não cabia dentro dele, nem no garfo, somente no doce. A vista ainda era estonteante, as pessoas não paravam de andar, sobre suas cabeças um sol revelador e sobre seus pés uma esteira sem fim. 

Mais um garfo de doce.

E outro.

E mais um.

E outro ainda.

E...

O prato eram restos.

-O amor acabou - declarou em paz.

Tomou seu celular nas mãos como um adulto segura uma conta e observou o horário. Conscientizou-se sobre o mesmo e dirigiu-se ao caixa para pagar por um preço, descobertas que não caberiam em moeda alguma neste mundo.

Caminhou até o lado de fora, onde, há alguns minutos, jazia uma ave azul. Sem procurar pela mesma, notou do outro lado do vidro, pessoas sorrindo e conversando naturalmente.

Descobriu-se autor e não personagem. Seu nome já não era o mesmo, lembrou-se que em seus documentos era somente possível ler-se Keenan Moisés Itera. Sua idade já não era assim tão avançada e seus vinte anos lhe retornavam sem demora. Sua postura ajeitara-se para alguém que pratica esportes diariamente e seus olhos brilhavam ainda mais que os raios de sol.

Voltou-se para o pássaro no chão, aproveitando para amarrar o cadarço de um de seus sapatos.

-Obrigado Elizabeth. - A ave no mesmo instante desaparecera.

-Saúde - disse agora um caminhante, sem desviar os olhos de seu celular.

 

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