Já eram onze horas da noite.
Ele ainda não estava em casa, esperava. Esperava no frio, no terminal,
seu ônibus.
Havia naquele dia um número maior de pessoas do que nos outros, algo
estranho no ar.
Ele olhava as pessoas e não as enxergava.
Pensava na frase: "Eu vejo a vida que está em ti, você vê a minha
em mim?"
O que aquilo queria dizer? Ele estava em outro mundo.
De um instante a outro percebeu-se fixamente encarando um pacote de
plástico.
Já não estava mais no terminal, estava no espaço entre ele e o pacote.
Nada mais havia ali. O ônibus não viria.
Percebeu também que ao fitar o plástico daquela maneira, ele ignorava.
O fazia sentir-se bem.
Não havia opressão a sua cor, a sua raça, a sua religião, a sua
sexualidade, o seu eu.
Era tão somente ele e o plástico.
Pacote do que aquilo era? Pertenceu a quem antes de ser jogado no chão?
O que ele guardava?
Não interessava.
O plástico transformou-se em uma metáfora, um refúgio.
Tentou desviar o olhar, mas viu-se incapaz. Ainda não era o momento de
sair.
Notou, involuntariamente, que pessoas chegavam e o rodeavam, esperavam
com ele o ônibus.
Para onde o ônibus o levaria? Por quê? O plástico era a salvação.
Sentiu um vento frio cortando o pouco calor de todos, o dele, em
compensação ao transe, não fora abalado. No lugar onde ele estava não havia
clima.
-Eu vejo a vida que está em ti! Você vê a minha em mim?
Isso lhe dava segurança. Ninguém nunca perguntaria isso a outra pessoa,
não nesse mundo, mas para ele aquilo deveria tornar-se necessário.
A frase protegia o ofendido, o oprimido. E afastava o ofensor, o
opressor.
A frase não permitia a ofensa nem a opressão. Era pura.
De repente, seu corpo moveu-se para frente. Os olhos fixos, o corpo à
frente.
Duas ou três pessoas passaram por seus olhos, conturbando a meditação.
Conversavam alto e falavam demais. Quem eram? O que representavam
naquele momento de paz?
PAZ.
Não havia mais ninguém novamente.
A paz do plástico o alimentava, o supria, de uma carência antiga.
Uma voz lhe disse irritada:
-Pare de me olhar.
Assustado olhou em volta. Alguém descobriu seu segredo, seu plástico.
Não havia ninguém, estava só.
Quanto tempo esteve ali?
Fechou os olhos e bocejou o maior dos bocejos, estava cansado, precisava
de um banho e sua cama quentinha. Precisava fugir para outro mundo, precisava.
Abriu os olhos.
Todos estavam à sua volta novamente. O ônibus, longe, vinha em sua
direção. O plástico? Era uma embalagem de pipoca doce.
Uma embalagem de pipoca doce.
O plástico havia sumido. Seu refúgio fora embora, era tempo.
Entrou no ônibus, sentou-se ao lado de uma janela e procurou na
embalagem o plástico. Em vão. Fechou os olhos e cochilou. Acordou no ponto onde
deveria descer. Desceu, caminhou para sua casa, entrou, sentou-se no
sofá.
Observou todos em sua casa e questionou-se:
-Onde estive?
Comentários
Postar um comentário