Esta história
fala de uma família comum. Talvez nem tanto pela exuberante quantidade de
filhos, mas mantinham uma comunhão padrão. Havia seis garotos e três meninas.
Destes nove, somente três nos importam realmente. A filha calada e misteriosa,
o garoto problemático e com tendência ao suicídio e o outro, que sempre
escrevia tragédias terríveis.
Certo dia, o
pai bêbado chegou exaltado em casa, cada dia um dos filhos era perturbado por
ele e neste, por fatalidade que viria, o suicida foi escolhido.
Havia nos fundos
da casa uma pequena reforma a ser feita, um pequeno muro a ser remendado. A
natureza havia pregado uma peça naqueles miseráveis. Mal dinheiro para a comida
eles tinham e o vento, a chuva, destruíram sua casa.
Foi então que
em um surto, após uma briga com sua esposa, o marido embriagado e a miserável
desmaiada, o homem foi a um estabelecimento de venda de materiais de construção
e gastou o dinheiro dos alimentos. Uma semana dividindo pão e água com os
ratos.
Os materiais
ali ficaram até hoje. Quando o suicida masoquista foi perturbado. O homem sem
controle agarrou o garoto, dormindo, pelos cabelos e jogou-o nos tijolos.
-Levanta seu podre!
- ele chutou a cabeça do menino que gemeu de dor.
Os outros não
intercederam, tinham medo. Só ficaram ali em volta, assistindo com uma
expressão apática. Era só mais um.
O garoto levantou-se,
pois, sabia que morreria se não o fizesse. Acatou as ordens em silêncio e
desejou matar o velho imprestável.
Muito
lentamente, o menino magricela, que já quase desmaiava pelo esforço,
reconstruía o pequeno muro. A raiva que sentia dos outros, que não o ajudava
mesmo depois de o demônio ter dormido, era quase tão grande quanto sua vontade
de morrer.
Foi então que
um maravilhoso plano lhe veio à mente. Iria solucionar vários problemas ao
mesmo tempo. Matar vários coelhos com um tiro só.
Segurou um
machado, que subliminarmente, ali estava e mirou seu braço, repousado a velha
mesa onde matavam cruelmente qualquer animal que servisse como mistura. Reparou
nos pedaços que ainda restavam do cachorro comido no almoço. Havia ali alguns
pedaços das tripas imundas do animal, os olhos e a mandíbula pareciam vivos,
olhando para ele, querendo-o dilacerado.
E assim, ele
tomou a coragem necessária para fazer. Levantou o machado e sabia que não
aguentaria mantê-lo erguido por muito tempo. Olhou tristemente seus irmãos que
o observava e chorou, ao ver que nenhum deles estava disposto a vê-lo vivo.
Com um golpe
não tão forte ele acertou seu braço. Agora o corte que ali estava era muito
maior do que os que ele fazia com a lâmina de barbear de seu pai. Pôde ver o
osso levemente danificado e sangue, muito sangue. Com os olhos turvos de
lágrimas e da morte que se aproximava, o garoto tentou caminhar para perto de
seus irmãos, que se afastavam assustados. O pai não se movia na cadeira,
descobriram depois que ele morrera envenenado.
Os pequenos
ficaram traumatizados com aquela imagem. Um humano seco, sujo de cimento e
areia, caminhando em sua direção com um braço mutilado por ele mesmo. Aquele
membro pendurado, jorrando sangue, lembrava a morte do cachorro do almoço.
Dizem que
quando você está morrendo sua vida inteira passa diante de seus olhos. Aposto
que a última imagem que aquele suicida vira, fora seu irmão chupando, feito espaguete,
o rabo do cachorro do almoço. Ele ficara aterrorizado. Era o único que passava
dias com fome, não comia nem um pão sequer e ainda vomitava o dia inteiro.
No mesmo
lugar onde caíra agonizando e gritando por ajuda ele morreu, ficou ali,
intocado. Os vizinhos ouviram tudo, mas de nada sabiam. No Brasil ninguém sabe
de nada, com medo da estranha bala perdida.
A única que
demonstrou afeto por ele foi a garota calada que o vendo morto, cobriu-o com
uma manta, sua favorita. Depois disso ela entrou em sua casa e chorou aos pés
da mãe desmaiada.
Todos na
vizinhança sabiam que deveria haver doze crianças, mas depois do nascimento da
garota misteriosa e calada, nenhum bebê vingava mais. Os últimos três foram
dados desaparecidos com dois anos, exatamente. Ninguém sabia do paradeiro dos
três. Ninguém exceto dois dos filhos.
Era sempre em
uma noite chuvosa, Deus do céu, quanta sorte aquela garota tinha. Quando era
tarde, bem tarde, sempre às 03h21min da manhã a garota levantava silenciosa e
tomava o bebê no colo. Corria para fora tampando a boca da criança para que não
se ouvissem os gritos. Certa vez um dos bebês desmaiara sem ar, enquanto a
garota corria para mata.
Chegando a
floresta, a menina jogava o bebê no chão com força, feito um boneco. Se o bebê
sobrevivesse ou não, ela se agachava sobre ele e mordia os bracinhos e as
perninhas tão macias. Mastigava os pedaços e socava a cara do neném que agora
desfalecia.
Houve um que
teve seu braço arrancado de tanto ela morder. Os pedaços em sua boca pareciam
pele de frango quando cozido. Aquela parte que ninguém gosta, aquela coisa mole
e indigesta. Feito nata. A diferença era que aquilo não estava cozido, tinha
sangue quente. Com desespero, com dor.
Após se
satisfazer, a garota limpava a boca com as costas da mão e ficava em pé, diante
do cadáver.
-Você ia
pegar minha comida seu inútil. Agora que você desmamou você iria querer comida.
Já somos nove, mal dá pra gente o que temos, não tem pra você, morra!
Era como um
ritual. As palavras eram sempre as mesmas. O rio onde o bebê era jogado era
sempre o mesmo, ou melhor, o rio onde os pedaços eram desovados era sempre o
mesmo.
Ninguém nunca
associou a volta daquela garota nua e gritando ao sumiço dos nenéns. Era
sonambulismo dela. E ela vinha sempre com aquela história de que viu alguém
entrando na casa e levando a criança.
Segundo ela,
ela seguia o raptor que a estuprava e batia, mas que sempre a deixava viva,
como aviso.
Todos
aceitavam, não havia outra explicação. Todos eram depressivos demais e não
ligavam. Os vizinhos nada diziam, ninguém se mete na vida dos outros, os
brasileiros, temem a arma surpresa. Nem quando o garoto morreu no quintal
alguém se meteu.
Era silêncio.
Ninguém fala, ninguém sabe nada, ninguém ouviu nem viu nada. É o drama
brasileiro.
Mas eu ouvi,
eu vi e relato tudo agora. Todos dizem que só sei escrever tragédias, mas não é
isto. Eu só escrevo o que vivo e o que ninguém tem coragem de dizer. Eu não
durmo, tenho insônia todas as noites. Eu vi o que minha irmã fez, eu a segui
até a mata. Eu ouvi o que ela disse. Eu senti sua raiva de longe.
Eu sei que
novas tragédias virão, pois essa não foi a primeira e estarei aqui para lhes
contar tudo. Todos os acontecimentos desta minha família comum.
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